Na tarde do último domingo de junho de 1994, ao chegar em Nova York, eu me dirigi rapidamente ao Whitney Museum para aproveitar os últimos momentos da exposição Evidence 1944 – 1994, de Richard Avedon, que encerrava sua temporada. Foi ali que me deparei com o nome da Bea Feitler (1938–1982) associado à fotografia, em particular, com o projeto do livro Diary of a Century, diário fotográfico de Jacques-Henri Lartigue, organizado por Avedon e publicado em 1970.
Já conhecia a obra mas, até então, não sabia que esse era o primeiro projeto de livro inteiramente paginado por aquela que se tornara reconhecida como a melhor profissional em design gráfico e direção de arte entre o início das décadas de 1960 e 1980. Brasileira, nascida no Rio de Janeiro, era filha de pais judeus instalados na cidade desde 1936, vindos da Europa assolada pelo nazismo. Nos anos cinquenta, estimulada pelo pai, empresário do setor gráfico, foi para Nova York estudar na Parsons School of Design.
Como pesquisador, interessa-me e muito as conexões estabelecidas entre fotógrafos, editores, diretores de arte, entre outros profissionais envolvidos na área de propagação com qualidade da imagem fotográfica. E logo percebi que o nome de Bea Feitler deveria receber atenção. O primeiro passo foi olhar para sua produção realizada aqui no Brasil. Conhecendo a importância da revista Senhor na área das publicações, consegui reunir os sessenta primeiros números, editada no Rio de Janeiro por Nahum Sirotsky e Simao Waisman, e circulados entre o final dos anos cinquenta e inicio dos anos sessenta. Bea foi estimulada pelo diretor de arte Carlos Scliar, que ficou encantado com seu portfólio e convidou-a para ser sua assistente. Foi através dessa experiência profissional que se aproximou de várias personalidades da intelectualidade brasileira e que deu inicio a sua trajetória de “sorte, sucesso e drama”.
Ainda hoje é perceptível a revolucionaria atitude na criação de algumas das suas capas assinadas, que se tornaram célebres e hoje são referências de experiência e ousadia gráfica. Sabemos também que nesse período produziu diversas capas de livro, entre elas, aquela emblemática de O Homem Nu, de Fernando Sabino, de 1960.
Por ocasião da preparação do livro de Otto Stupakoff, editado pela Cosac Naify, tive oportunidade de ouvir muitas histórias envolvendo aquela que seria sua madrinha em Nova York. Bea foi responsável direta por abrir as primeiras páginas para sua fotografia e propiciar, através dos inúmeros jantares e encontros em sua casa, a aproximação com Richard Avedon e Diane Arbus, entre outros profissionais que se transformaram nos mestres da fotografia produzida no período. Ano passado, visitei a exposição de Diane Arbus em Paris, e no texto biográfico de parede era possível ler que a fotógrafa produziu um portfólio para vender seu trabalho e o primeiro deles, e o único vendido, foi adquirido exatamente por Bea Feitler, sua melhor amiga.
Tudo isso, para qualquer pesquisador da área, merece atenção e claro, numa visão mais ampliada, o trabalho de Bea Feitler em particular merece destaque na cronologia da fotografia brasileira, uma vez que sua inserção no mercado internacional foi pioneira e sua visão inovadora do uso da fotografia no desenho gráfico foi indiscutivelmente aceita. Foi incorporada ao staff da revista Harper’s Bazaar em janeiro de 1961, como assistente de Marvin Israel, que substituiu o lendário Alexey Brodovitvh, que trabalhou na revista entre 1934 e 1958. A partir de 1963, Bea Feitler e Ruth Ansel formariam uma parceria que não só deu continuidade ao trabalho dos diretores de arte anteriores, como soube introduzir um novo e inigualável frescor visual.
Foi Bea Feitler que revolucionou a revista a partir dos trabalhos conjuntos com Richard Avedon, os grafismos inusitados de Hiro, os ensaios nada convencionais de Diane Arbus, as sutilezas dos enquadramentos de Frank Horvat, entre muitos outros fotógrafos que marcaram época na revista. Foi nesse denso e revolucionário caldo cultural que Otto Stupakoff encontrou abertura para iniciar sua trajetória internacional. Por isso mesmo, ele não cansava de elogiar Bea como a profissional que era “a melhor diretora de arte que já existiu no mundo”.
No livro que fizemos juntos, ele deixou claro que Bea “foi a única diretora de arte que conheci que sentia uma responsabilidade pedagógica em relação ao fotógrafo. Não só o ajudava a encontrar o seu estilo, como também o ajudava a se desenvolver como profissional, a tal ponto e com tal seriedade, que não admitia a hesitação do fotógrafo durante um trabalho”. Por inúmeras vezes, Otto também me descreveu os jantares na casa de Bea onde aconteciam as discussões de ordem estética-editorial com ela e Avedon, e as saídas estratégicas para circular no Central Park com Diane Arbus, entre outras lembranças que ativavam minha imaginação.
Penso a fotografia exatamente assim, ou seja, uma discussão contínua, que não termina com o trabalho finalizado, mas envolve “o onde, como e porquê” fazê-lo circular; envolve vida, sentimento, paixões e trocas permanentes de ideias. Isso me parece fundamental e decisivo para a formação e o desenvolvimento do artista. Mais do que nunca, Bea Feitler marca presença na história da fotografia aplicada.
É impossível não lembrar a capa da Harper’s Bazaar de abril de 1965, a partir da fotografia de Richard Avedon, dedicada à corrida espacial, em que o rosto da modelo Jean Shrimpton está emoldurado por um capacete recortado em papel rosa e fundo cinza, totalmente improvisado por Bea, dada a urgência que tinha em fechar a edição, em contraste com o logo da revista em verde-limão. O momento era de ousadia e plena efervescência: pop art, liberação feminina, corrida espacial, entre outras revoluções e pressões libertárias dos anos sessenta que foram agentes transformadores da história.
Depois foi diretora de arte da revista Ms, publicada entre julho de 1972 e junho de 1976, e trabalhou diretamente com Mary Ellen Mark, Bill King e Annie Leibovitz, entre outros. Com Fátima Ali e a editora Abril desenvolveu como consultora a revista Setenta, que teve onze edições em 1970, e teve como colaborador o fotógrafo norte-americano Bill King. Ela ainda participou de inúmeros projetos de livros, capas de discos e criou para o The Alvin Alley American Dancer Theater todo o material gráfico – cartazes, folhetos, libretos – e até mesmo alguns figurinos. A dança era a sua segunda grande paixão. Mas também deixou sua marca na revista Rolling Stone, criando entre tantas, a contundente capa em janeiro de 1981, logo após o assassinato de John Lennon, que aparece nu abraçado a Yoko Ono na fotografia de Annie Leibovitz. Há apenas a fotografia e o logotipo da revista. O resto é silêncio iconizando a dor e o luto de uma geração.
Ao folhear as páginas do livro O design de Bea Feitler, recentemente publicado pela Cosac Naify, é possível conhecer a melhor referência brasileira na área de design gráfico e também ter acesso parcial ao seu universo pessoal, por meio de retratos, raros snapshots feitos por seus amigos íntimos – Duane Michals (1963), Richard Avedon (1964), Diane Arbus (1965), Hiro (1967), Jacques-Henri Lartigue (1968), Bill King (1970), Annie Leibovitz (1977), entre outros.
Morreu em 1982, após constatar um raro tipo de câncer muscular. Com certeza, viveu em profundidade cada momento e soube trazer para o seu trabalho as principais marcas do seu tempo. No final do ano de sua morte foi criada a Bea Feitler Foundation for the School of Visual Arts, responsável por outorgar anualmente bolsas de estudos aos jovens talentos da área.