A fotografia foi considerada uma forma menor de expressão porque, supostamente, limitava-se a coletar do mundo, por meio de um gesto mecânico, fragmentos de formas prontas e já resolvidas em seus sentidos. Em resposta, a afirmação da fotografia como arte exigiu reduzir a realidade a um estado de matéria-prima insignificante, disponível para a manipulação do fotógrafo e para a projeção de sentidos que lhe são totalmente subjetivos. Se essas posições extremas nos deixam uma lição, é a necessidade de enxergar o processo de criação como algo que concilia invenção e encontro. Nessa perspectiva, toda fotografia tem algo “apropriação”: esse gesto simples de deslocamento das coisas cuja potência de ressignificação a arte do século XX nos ensinou a enxergar.
Na mesma medida em que aceitamos que a fotografia constrói seu sentido numa negociação com o mundo, aquilo que chamamos de realidade assimila cada vez mais as imagens como um de seus elementos constituintes. Ou seja, se a realidade nunca existe para o olhar humano como matéria-bruta, é possível pensar as imagens como parte dessa mesma realidade. É assim que a fotografia passa a existir não apenas como investimento estético, ela própria retorna muitas vezes ao processo de criação como fragmento de mundo disponível para apropriação.
A apropriação de imagens, coleções ou acervos fotográficos representa hoje uma dimensão importante da produção contemporânea. Essas experiências têm o mérito constituir, com certa espontaneidade, um lugar que ignora os embates históricos que separam a fotografia de outras artes visuais. Além disso, é por meio dessas apropriações que muitos artistas estabelecem uma crítica bastante contundente a uma série de “discursos totalizantes” que contaminam nossa noção de história, memória e realidade, teorias que apenas conseguem abordar as experiências forçando-as a caber dentro das definições que oferecem. A seguir, uma síntese de alguns desses discursos que podemos repensar por meio das apropriações fotográficas.
Historicismo
A tradição historiográfica positivista fez acreditar que era papel do historiador representar fielmente os fatos por meio de grandes narrativas, bem como estabelecer entre eles uma precisa relação de determinação. Isso pressupõe que as tensões que permeiam as mudanças podem ser ignoradas, resumidas por seus vetores dominantes, aqueles que podem ser definidos como “causa”. O resultado disso é que tais mudanças parecem sempre ocorrer numa direção necessária que chamamos de “progresso”. Esses vetores dominantes, que dão à narrativa a ilusão de um perfeito assentamento dos fatos em suas relações de determinação, aponta aquilo que Benjamin chamaria de “história dos vencedores” (“Sobre o conceito de história”, tese 7).
Demonstrados os riscos políticos desse tipo de método, reivindicou-se a possibilidade de abordar a história por meio das pequenas narrativas, construída a partir de fragmentos, reminiscências, ruínas, representações que não almejam compor uma unidade de discurso e não permitem deduzir as relações de causa e efeito visadas por essa historiografia.
Benjamin valoriza a atuação do cronista porque este não distingue os pequenos e os grandes acontecimentos. Para ele, “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (“Sobre o conceito de história”, tese 3). De modo semelhante, muitos artistas que se apropriam de imagens não ignoram personagens e olhares que se tornaram anônimos, porque não estão comprometidos com a autoridade que o historicismo busca para suas fontes.
Monumentalização da memória
Sobretudo por meio de duas grandes guerras, o século XX cobrou a consciência de que o progresso não joga necessariamente a nosso favor. Em outras palavras, trouxe a consciência de que nossa própria permanência como civilização está em risco. Também demonstrou a impossibilidade de traduzir por meio das narrativas as catástrofes que produziram essa consciência. Como lembra Benjamin, na Primeira Guerra “os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos” (Benjamin, “Experiência e pobreza”).
A angústia que resulta desse risco de desaparição e da impossibilidade de narrar tem como resposta, no pós-guerra, a construção de grandes monumentos e a ansiedade de constituir arquivos que possam acolher todas as formas possíveis de documentos, artefatos e testemunhos referentes a certa experiência que merece ser lembrada (Andreas Huyssen, Seduzidos pela memória), visando também garantir uma interpretação segura daquilo que supostamente representam. Essa estratégia quantitativa revela também uma abordagem totalizante da memória. Se a destruição dos arquivos havia sido uma prática recorrente nos regimes fascistas, é igualmente perigosa a imposição de um processo definitivo de organização e interpretação das reminiscências.
As experiências estéticas de apropriação têm o mérito de assumir a incompletude dos fragmentos com que lida e, mais do que isso, de arrancar das lacunas que restam o potencial de interação da história com o presente. Com isso, garante o espaço para o que pode haver de involuntário na memória, sentidos que se constituem numa relação com cada momento do olhar, e que não são dados a conhecer previamente, muito menos, definitivamente.
Oposição entre realidade e representação
Cada vez mais, tomamos as imagens como referência para pensar o mundo e definir nossos comportamentos. A resposta filosófica a essa constatação vem normalmente sob a forma de uma denúncia: a imagem usurpa o lugar da realidade (Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação) que, então, se vê reduzida a um jogo de meras aparências. Muitos artistas assumem essa teoria como questão central em seus trabalhos (a exemplo de Cindy Sherman e Sherrie Levine). Alguns, pontualmente, usarão também a estratégia da apropriação como forma de demarcar o excesso, a repetitividade e o vazio dessas imagens (a exemplo de Penélope Umbrico e Joachim Schmid).
De fato, é preciso buscar nas imagens algo mais do uma aparência que elas próprias ajudam a moldar. Mas as teorias que opõem radicalmente imagem e realidade parecem sonhar com a possibilidade de uma existência das coisas em estado puro e originário, algo que, para um ser simbólico como o homem, só pode existir como fantasia teórica. Viver dentro de uma cultura é dar sentido às coisas e assumir papéis. Não há portanto como pensar uma realidade humana sem dar conta das representações que o homem constrói de si mesmo e de seu entorno.
Superada a posição maniqueísta que opõe imagem e realidade, e que se interroga sobre a veracidade ou a falsidade das fotografias, reencontramos nas apropriações uma estratégia que visa tocar efetivamente a história de um sujeito, de uma família, de um grupo social, naquilo que invariavelmente eles próprios têm de representação, uma “realidade simbólica” da qual essas fotografias participam.
Hegemonia da história da arte
O historiador e antropólogo Hans Belting aponta os riscos de querer organizar a história das imagens sob a perspectiva hegemônica da arte (O fim da história da arte). Na prática, o que ele quer dizer, e que não é difícil demonstrar, é que boa parte das imagens à qual a história da arte se refere não teve em seu momento qualquer pretensão de constituir aquilo que hoje entendemos como obra de arte. Olhando para o passado, percebemos que muitas imagens compunham dinâmicas utilitárias: a magia, os ritos religiosos ou sociais, documentações, ilustrações científicas, propaganda etc. Pensando o mundo contemporâneo, torna-se ainda mais evidente o fato de que apenas uma parte da nossa produção de imagens está relacionada a propósitos artísticos. A história da arte deveria ser, portanto, apenas um capítulo de uma história mais ampla das imagens.
Nesse sentido, a apropriação de imagens – que estão em álbuns de família, ou nos jornais, na publicidade – representa o reconhecimento, por parte dos próprios artistas, de que há uma cultura visual para além do universo da arte. Significa também o desejo de colocar a produção artística em diálogo com esse aspecto mais amplo da cultura do qual as imagens participam, sem a necessidade de uma hierarquização.
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* Este texto, é uma adaptação da apresentação feita na Galeria Zipper, em janeiro de 2013, em debate com João Castilho e Thyago Nogueira, sobre a exposição “Imagem Mi(g)rante”, que teve curadoria de Mario Gioia. Artistas: Adriana Affortunati, Ana Lucia Mariz, Fernanda Barreto, Ivan Grilo, João Castilho, Marcelo Amorim, Marcia Rosolia, Mariana Tassinari, Mayana Redin, Monica Tinoco, Nati Canto e Selene Alge.