Michael Ruetz ficou conhecido pelas imagens das marchas triunfais da Oposição Extraparlamentar Alemã – APO e das manifestações no campus da Universidade Livre de Berlim após o assassinato do jovem Benno Ohnesorg, em 1969. Documentou também a invasão da Tchecoeslováquia pelas tropas soviéticas e, como enviado da revista alemã Stern, cobriu a ditadura militar na Grécia. Mais tarde, fotografou a vitória de Salvador Allende no Chile, a guerra em Guiné-Bissau e vários outros eventos internacionais.
Seu trabalho pode provavelmente ser comparado ao de muitos fotojornalistas que testemunharam a amplitude, a diversidade e a intensidade dos movimentos sociais e políticos que invadiram o mundo nos anos 60 estendendo-se até o início da década de 1970. São imagens que nos possibilitam conhecer os rostos dos movimentos sociais, as feições revolucionárias da história, aquilo que Michael Löwy aponta como significativa contribuição da fotografia.
Tal produção pode ser pensada como a imagem de um regime temporal constituído pela fotografia ao longo de seu percurso moderno, em que a experiência fotográfica apresentava importante sincronia com o conceito de acontecimento. Trata-se de uma espécie de limiar discursivo de um modelo imagético que, progressivamente, será ultrapassado, configurando, mais tarde, outros regimes de visibilidade e, sobretudo, outros regimes fototemporais. Vejamos esta imagem do dia primeiro de maio de 1967, em Berlim.
Essa imagem apresenta para mim, em especial, uma figura exemplar da profunda conexão entre um modo de experimentar o tempo e um modo de gênese fotográfica. Primeiramente, não é possível deixar de notar intensa sincronia no interior da imagem. Sempre me pareceram curiosos movimentos coletivos espontâneos que se realizassem por meio de marchas, nessa espécie de transe voluntário e consciente. O que é espantoso nas marchas é a efetuação de simultaneidades de gestos, como nessa fotografia. Alguns militantes se dão as mãos, outros mantem a marcha apenas por meio do ritmo (imagino). Fora da imagem está o fotógrafo, que só pode intervir com seu corte, seu piscar mecânico, quando também se sintoniza com a marcha em curso. Esse sistema sincrônico nos faz pensar que, no momento de produção dessa fotografia, ninguém esteve fora dela; tudo parece sugerir, aliás, que ninguém jamais esteve, nesse instante, fora dessa imagem.
Talvez porque a condição de possibilidade dessa fotografia seja exatamente uma sincronia mais ampla do que o mero disparar do obturador em algum momento possivelmente correto. Fotografia e marcha compartilham o mesmo horizonte histórico, bem como os projetos ideológicos e os programas partidários da época. Trata-se, a meu ver, de um sentimento de tempo que permeia fotógrafo e fotografados, que possibilita que ele (o tempo) seja vivido como experiência privilegiada; como acontecimento capaz de construir outro futuro, na época ainda aberto.
O acontecimento trata de um tempo de singularidade e descontinuidade que se contrapõe ao tempo da irrelevância, do evento ordinário, do fluxo ininterrupto. Supõe uma multiplicidade de durações e afasta-se das séries temporais únicas e mensuráveis. Pensar o tempo por meio do conceito de acontecimento nos possibilita investigar em que condições o mundo objetivo permite uma produção subjetiva de novidade, isto é, uma “crição”. Como seria possível, em meio à realidade do fluxo temporal, intervir com uma espécie de crivo, algo que difira, algo que possibilite o outro, algo que aflore de um tempo prenhe de alteridade, heterogêneo e relacional. Tal reflexão exige uma análise acerca dos conceitos de singularidade e de repetição, sucessão e simultaneidade, identidade e diferença, duração e instantaneidade, ruptura e continuidade.
Esse debate, é claro, não surgiu na década de 1960, quando essas imagens foram realizadas. Tratou-se, antes, de uma ampla controvérsia acerca da textura temporal, atômica ou fluida, que, a partir da segunda metade do século XIX, envolveu pensadores como Nietzsche, William James, Bergson, Poincaré e, no século XX, também mobilizou Edmund Husserl, Karl Jaspers, Martin Heidegger, Walter Benjamin, entre outros.
Tal polêmica, cuja expressão se encontrou em vários círculos intelectuais, centrava-se em discussões sobre interpretações qualitativas e quantitativas do tempo e, sobretudo, sobre a possibilidade de haver, na série temporal, um momento autêntico: momento do tempo capaz de explodir o interminável procedimento de contagem de números, de estilhaçar o tempo homogêneo e contínuo. Duas questões estavam em jogo: o que seria o “agora” – sua dimensão, extensão ou intensidade – e se esse agora poderia distinguir-se, assumindo papel de momento transformador. O que poderia ser considerado, de fato, um momento de ruptura – alterador do tempo vazio do capitalismo? Tal debate ganha potência renovada diante da realidade cada vez mais saturada do consumo – da constante produção de objetos, informações e imagens em série, circulando e proliferando. Por um lado, há uma lógica cultural, plantada desde o século anterior e já bastante arraigada no XX, que exige e apreende com naturalidade bruscas alterações e novos produtos. Por outro, a “sequencialização” do novo exige que sejam pensados modos autênticos de interrupção e de diferença.
Como a fotografia se relaciona com os debates e as experiências temporais dessa modernidade? Para o fotógrafo, tal qual se formulou na modernidade, era necessário estar sempre preparado para perceber a emergência desse tempo singular do acontecimento. Tal expectação suporia (e, simultaneamente, produziria) potencial heterogeneidade: cada instante do tempo vertia-se em abertura ao distinto e ao diferencial. Desde que a fotografia se tornou instantânea a câmera fotográfica passou a ser um modo de decifrar o tempo, de afrontá-lo e, também, de qualificá-lo. Os apreciadores do instantâneo experimentaram e deixaram-se surpreender pelos efeitos que a captura do instante produz, fundando sua ação numa produção de permanente problematização do tempo.
Trata-se sobretudo de uma profunda conexão com a passagem do tempo: quando dispara, promove um reconhecimento do agora. Estar pronto a fotografar modernamente é, em simultâneo, esperar e promover, perceber e produzir uma mudança. Os fotógrafos modernos, que observam e ‘caçam’, procuram decifrar o tempo e sentem-se autorizados a investigar e eleger o instante exato de captura para que ali se cristalize tal reconhecimento. Assim, estão permanentemente à procura, como se incentivassem sua própria percepção a fazer o mesmo movimento que a lente realiza quando procura o foco: produzem um esforço de qualificação temporal para que, no instante correto, aquela imagem decante as mudanças sucessivas e se fixe no plano focal. É necessário, portanto, que haja certa economia de pensamento e sensação, avaliação e precipitação, enfim, um trabalho de duração simultâneo ao esforço de “instantaneização”.
Permitir que se estabeleçam critérios de relevância acerca do instante durante sua própria configuração significa precipitá-lo, colocando em prática a capacidade moderna de produzir prognósticos: só desse modo o instante estará minimamente coincidente com o piscar do obturador. Tal operação exige uma dilatação temporal peculiar e, em grande medida, uma decorrente inclinação para o futuro. Como Maurício Lissovsky sintetiza: “na iminência do instante singular, restitui-se ao tempo sua potência de interrupção. Isso que cabe à espera, numa ética do instante, é resguardar o futuro e, em seu interior, a temporalidade do acontecimento e da diferença”.
Chegamos, então, à última parte de nossa reflexão. Já falamos que nesse sistema sincrônico, que abarca fotógrafo e fotografado, não há apenas a sintonia exigida pela marcha, mas também estreita conexão entre o gesto fotográfico e o reconhecimento de que aquele momento verte-se em marco social e que, sendo acontecimento, poderia distinguir-se do fluxo natural e transformar a história. Falamos aqui acerca da ideia de que os homens podem apoderar-se de seu tempo e disputar seu destino. Isso indica uma última e talvez mais significativa consonância: a marcha não deseja apenas intervir na ruptura, mas, principalmente, plantar, lutar, exigir que o futuro seja diferente. A fotografia não deseja apenas decalcar no instante o título de marco: ela também deseja entrar em comunhão com o futuro, visar ao que está por vir. A fotografia aqui materializa o próprio projeto moderno de futuro, posto que esse marco só se estabelece como acontecimento segundo um certo horizonte de expectativas. Assim, o tempo, nessa imagem de Ruetz, é uma experiência privilegiada porque não equivale a simples passagem cronológica. Sugere uma grande suspensão temporal que, simultaneamente, verte-se na potência do acontecimento. Está repleta de coragem, derrota, frustação, medo, confiança, política e, sobretudo, de uma profunda sincronia entre a fotografia e o que, em cada época, é possível desejar e imaginar como futuro.
Assim, o que parece significativo nas imagens de Ruetz não se resume a ter sido testemunha da força das manifestações coletivas que disputavam e reinventavam então o espaço público. O vigor de seu trabalho está, principalmente, em permanecer impregnado dos sonhos de nossa história. Como percebeu Walter Benjamin e assinala Maurício Lissovsky, a temporalidade de que tratam as imagens fotográficas é fundamentalmente o futuro – aninhado como um segredo que nos convida de modo permanente a ser desvendado. Uma grande arca de futuros pretéritos possíveis, a fotografia arquiva os vestígios não só dos fatos ocorridos, mas também dos sonhos que constituem a materialidade de nossas vidas. As histórias que poderiam ter acontecido e as histórias que se perderam no caminho, as que não venceram e as que poderiam não ter vencido permanecem − todas elas − arquivadas em imagens fotográficas como as de Ruetz, à espera do leitor capaz de desvendá-las. O gesto dessas fotografias nos faz indagar que horizontes de transformação habitavam aquele tempo; que projetos foram esquecidos, enfraquecidos, afogados; que expectativas sobreviveram, foram guardadas ou substituídas; de que sonhos, afinal, éramos feitos nos tempos já passados?
* A exposição de Michael Ruetz 1968: tempos incômodos, promovida pelo Goethe-Zentrum Brasília, estará na Caixa Cultural em Brasília até dia 27 de janeiro de 2013.