A escola e a fábula da câmera total

[15.abr.2014]

Fritz Lang, fotograma do filme Metrópolis, 1927

Fritz Lang, fotograma do filme Metrópolis, 1927

Há alguns dias, uma aluna contou em sala, na Universidade de Brasília, uma sequência de fatos recentes ocorridos na turma em que é professora, segunda série do ensino fundamental, numa escola pública do Plano Piloto do Distrito Federal. Seu depoimento gerou um debate interessante acerca das imagens que nos são sincrônicas no regime de visibilidade contemporâneo e sua relação com a escola; debate daqueles que nos fazem ficar um bom tempo refletindo sobre eles. Meses; às vezes anos. Pois bem, um furto deu início aos eventos.

O dinheiro da carteira de um dos alunos da escola – que têm em média oito ou nove anos – tinha desaparecido dentro da sala. O fato gerou uma série de desconfortos, conversas, discussões ríspidas entre pais, alunos, professores e diretora. Em primeiro lugar, a professora tratou de colocar o furto em discurso. O “ladrão” deveria – segundo minha aluna – confessar seu ato e tudo, então, voltaria ao normal. A técnica da confissão, como nas escolas disciplinares descritas por Foucault, foi evocada como dever fundamental para o bom relacionamento da turma. A professora, em mais de uma “conversa” dedicou-se obstinadamente, representando as instâncias de poder da escola, a ouvir falar e fazê-lo falar (ele próprio, o ladrão, quem quer que fosse) de modo explícito sobre o pequeno delito. Por confidência sutil ou por interrogatório autoritário, o furto deveria ser dito, e a conduta de confissão levaria, então, à solução do constrangimento geral. Deveria, mas não levou.

Jo Ainley, Vigilância.

Jo Ainley, Vigilância.

A autoridade da professora não foi capaz de incidir de fato na conduta requerida. A exigência e a ameaça, métodos de inquisição, não surtiram nenhum efeito coercivo diante do pequeno e provavelmente pontual “delinquente”. O silêncio total – do culpado e de seus colegas – deixou a professora e a escola diante de um impasse. Depois de seguidas reclamações dos pais, a diretora da escola convidou a professora para uma conversa e, juntas (na verdade, por sugestão da diretora), reformularam a estratégia. Ao final das aulas do dia seguinte, a professora desfiou, para a turma, sua fábula. Nela, a direção da escola e a professora já conheciam a identidade do culpado porque as câmeras dispostas nas salas de aula lhes tinham contado quem teria cometido o furto e comprovado a ação. Por compaixão, a professora estava dando a última chance para que o culpado se entregasse por conta própria, que confessasse uma explicação – não um esclarecimento de si (porque isso não parecia importar) mas do mau comportamento. Alguns dias depois, o silêncio foi quebrado por um bilhete escrito com “péssima caligrafia” (segundo a professora), sem assinatura, declarando: “roubei o dinheiro, mas desculpa não tenho dinheiro para pagar”. A professora reconheceu a letra do aluno, chamou os responsáveis por ele, e “o mau indivíduo” (que, na verdade, era órfão e morava há alguns meses na cidade com uma tia) foi enviado, “devolvido”, novamente ao Piauí. A câmera imaginária, no entanto, permaneceu na sala de aula, em Brasília.

Não sabemos ao certo quantos acreditaram ou ainda acreditam em sua existência dentro de um espaço tão íntimo quanto a escola pode parecer para as crianças. Também difícil seria dizer quantas das crianças já procuraram averiguar sua materialidade nos cantos da escola ou o que a imaginação infantil foi capaz de produzir a partir da “existência” dessas câmeras invisíveis no local em que passam grande parte de seus dias. Teria alguma criança levado as câmeras que tudo veem também para os seus sonhos?

A professora não pode desmentir-se, sob pena de perder a autoridade que ainda lhe resta. Assim resguarda, protege, acoberta, com o apoio de sua diretora, a perversa “fábula da câmera total”, perdendo a oportunidade de transformar o fato em algo verdadeiramente “pedagógico”, desperdiçando a chance de verter o infortúnio em um acontecimento comum. Trata-se aqui de um pedido de clemência: o regime disciplinar implorando ajuda às tecnologias contemporâneas de vigilância para se manter minimamente moribundo.

Imaginemos, então, o que está acontecendo exatamente agora nessa sala de aula, mediada por uma câmera que tudo vê e nunca é vista. Numa espécie de pique-esconde eterno, os “pegos” nunca finalizam sua contagem, nunca surgem de nenhum “pique”; sem rosto, estão continuamente em todos os lugares, simultaneamente, funcionando no “modo” TOTAL. Por outro lado, nesse jogo involuntário as crianças não são capazes, de fato, de se esconder em nenhum canto de parede, debaixo de nenhuma mesa, atrás de nenhuma cortina. Como no panóptico, “se o olho está escondido, ele me olha, ainda quando não me esteja vendo”.

Denis Beaubois, In the event of Amnesia the city will recall… 1996 – 1997 (Instalação).

Denis Beaubois, In the event of Amnesia the city will recall… 1996 – 1997 (Instalação).

Primeiro, seria interessante pensar o que possibilita e legitima a criação de câmeras invisíveis dentro dos espaços privados de uma escola como único dispositivo capaz de instaurar o acordo escolar (porque, temos de admitir, só as técnicas disciplinares tradicionais, o discurso e a ameaça de ação punitiva da professora não foram capazes, não é mesmo?). De que escola e de que falência trata, então, a fábula da câmera invisível? Depois, também nos parece relevante indagar que corpos e subjetividades a ideia dessa câmera invisível pode produzir na escola, que modos de ser estão sendo estimulados por essas câmeras de ver. O que sentiriam esses alunos que estão permanentemente “guardados” pelo olhar do outro? Trata-se de um olhar especular, invisível, superior, capaz de vigiar e de punir, mas, além disso, capaz de tornar cada uma daquelas crianças, incluídas as que não cometeram qualquer delito, um ser/comportamento controlado e exibível, simultaneamente.

De fato, poderíamos investigar se não estaria sendo efetivado nessa escola um corpo-sujeito dócil (ou artificialmente dócil), mas, também, bastante exteriorizado, exibicionista e performático. Ou vão dizer que a câmera só funcionaria para os “maus indivíduos ladrões de carteira”? Iriam os “bons indivíduos” provavelmente exceder seus bons comportamentos a fim de fazê-los visíveis? Assim, seria possível supor que a existência da câmera invisível irá gerar outros efeitos além do constrangimento paranoico nos alunos. Apoiados na subjetividade contemporânea, poderíamos ironicamente até imaginar que os alunos experimentam certo prazer em estar sendo filmados. Explico. Não se trata apenas de “atualizar” a vigilância moderna. Essas câmeras, sejam visíveis ou não, fazem parte de uma subjetividade em transformação que tem nas tecnologias da imagem um de seu pilares.

Como Benjamin afirmou, “todo o presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas”. Em sua perspectiva, “cada agora” é o agora de um certo reconhecimento, o agora de uma legibilidade própria, e cada época histórica é determinada por uma constelação de imagens. Isso significa, primeiramente, que algumas imagens só se tornam legíveis em uma determinada época e atingir essa legibilidade constitui um certo ponto crítico específico do movimento interior das próprias imagens. Por essa razão, conclui Benjamin, “a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir”. Sendo histórica, a verdade dependeria também das imagens que emergem em nossos regimes de visibilidade. Cabe ressaltar que, nesse sentido, imagem e política, percepção e história não são dimensões que se entrelaçam apenas, mas agem reciprocamente umas sobre as outras. A imagem adquire, no pensamento de Benjamin uma característica ambivalente: assume a potência catalisadora de absorver seu momento histórico (ser efeito de uma época) e, simultaneamente, fazer nascer outros sentidos para a história e para a arte.

Bansky

Bansky

Nesse aspecto, a “fábula da câmera total” – sustentada nessa escola a justificativa de uma espécie de estado de exceção produzido por um pequeno furto (para pensarmos com Giorgio Agamben) – não representa apenas uma mentira enunciada por professores, mantida provavelmente também pelos pais, tornando-os tão mentirosos quanto os “mestres”. Do mesmo modo, não noticia apenas a falência de um modelo escolar. Na realidade, talvez não haja nela nada de excepcional, a não ser o fato de ter sido vivenciada com extrema banalidade e profunda naturalidade, por integrar a regularidade de uma série de outros enunciados contemporâneos; mas, especialmente, por ter sido crível para as crianças e dizível pelos adultos (e certamente isso não se dá porque as crianças sejam idiotas ou inocentes e os adultos diabólicos, como talvez possa parecer).

A câmera invisível pôde e pode existir, ser visível, legível e, sobretudo, capaz de produzir efeitos reais na vida das pessoas, porque dá carne às imagens que nos são sincrônicas, para lembrarmos o pensamento de Benjamin. Como enunciado, aceito e reconhecido, emerge do solo no qual repousam as verdades e os saberes contemporâneos. Mais do que isso: a fábula da câmera total materializa-se como dispositivo da subjetividade atual dentro da escola, fazendo parte do tecido de nossos tempos, participando das constelações de imagens que não são apenas produtos de nossa episteme, mas que também, simultaneamente, agem sobre ela e determinam nosso presente histórico. Continuaremos esse papo no próximo post.

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Fotógrafa, pesquisadora, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

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