Voto de Ana

[03.maio.2015]

“Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois”, Guimarães Rosa em seus últimos escritos, publicado em 1967 no Tutaméia

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© Ana Lira

Na última Bienal de São Paulo (2014), a fotógrafa Ana Lira expôs “Voto”, obra que foi oportunamente coligida num livro homônimo e que veio à luz sob o selo da Pingado Prés. É de se louvar o esforço dessa editora responsável por dar forma de livro às boas ideias, ela que, seguramente, merece o olhar de quem deseja publicar fotografias. No pavilhão da Bienal, a obra ganhou em escala ao ser firmada sobre um suporte de acrílico cujo traço característico era, digamos assim, estar numa fronteira entre a opacidade e a translucidez, de maneira que deixava entrever, mas não nitidamente, o público que percorria a obra. O livro[1], por sua vez, traz as fotografias como cartazes, nos permitindo uma visão mais exata das imagens impressas.

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Bienal de São Paulo, 2014

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livro Voto | editora Pinga Prés

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livro Voto | editora Pinga Prés

“Voto” me inquieta e me interessa desde que soube que seria exposto. Esse interesse e inquietação estão ligados à própria dimensão do “falar” e do “fazer” de Ana Lira, numa palavra, à sua atuação artística. É preciso reconhecer, nela, uma artista que de alguma maneira nos ensina a ser público, alguém cujo interesse mais vivo incide justamente na formação do público – formativo e político nos sentidos mais elevados dos termos -. Sempre a vi atenta, agenciando trabalhos, trocando, conhecendo. Em suas mãos e em suas palavras transmitem-se, costumeiramente, pesquisas teóricas e pictóricas, porque ela se permite atravessar – tal como o suporte acrílico onde dispôs seu “Voto” – por um volume atual de produções artística e teórica, fazendo de sua presença um meio de divulgação urgente e intrínseca às sua andanças pelos eventos culturais, próximos e longe de casa, sempre muito discreta, assistindo, pensando, para depois debater e compartilhar o que viu.

Em 2014, seu trabalho foi escolhido para ocupar metros preciosos do espaço da arte. Ana Lira expandiu-se, assim, de seu papel mais conhecido e expôs sua pesquisa abrigada por Niemeyer e contemplada pelos olhos de tantos quantos acorrem ao pavilhão. Uma série de fotografias registra cartazes de propagandas eleitorais colados na rua, sobrepostos por outros cartazes de outras campanhas políticas e, assim, indefinidamente. Com o tempo e as sucessivas sobreposições, os cartazes se misturam, esmaecem a cor, esbatem os traços de suas figuras. O que foi colocado há 10 anos reaparece, irrompe de um certo estrato que já acumulava quatro outras colagens. Uma parte do que se sedimentou há tempos vem à tona na imagem. E, nessa mescla, as colagens que eram vermelhas se tornam amarelas; a boca do candidato de esquerda pode muito bem aparecer como parte do rosto de outro candidato de outra campanha eleitoral, e assim por diante. Os discursos – as imagens – misturam-se carcomidos pelo tempo, o que sugere, nesse trabalho da fotógrafa, um manifesto sobre a natureza da política institucional brasileira, a saber, sobreposta e erodida pela ação pragmática de discursos eleitoreiros que não se sustentam nem por um biênio; o travo característico da realidade nacional, o passado que se imiscui no presente.

© Ana Lira

© Ana Lira

Distanciando-me um pouco da obra de Ana Lira, particularmente rumo à minha experiência pessoal de expositor, aprendi que há, nessa aventura de expor, uma certa zona de indeterminação que a recobre, uma certa falta, de nossa parte, de controle sobre as ideias. Os trabalhos parecem assumir em sua constituição uma dimensão própria, eles mesmos parecem dispor de uma capacidade de distanciamento, de forma que a relação de criação parece se inverter, repousando, agora, noutro polo – os próprios trabalhos tramam um distanciamento e só amadurecem quando, de alguma forma, recusam essa autoria, quando passam a expressar e veicular mais os sentidos públicos que lhes adensam. As pesquisas costumam migrar, assim, para um novo estado. Sair do papel de expositor, retornar àquela condição mais perene, a de espectador, nos (re)faz críticos. Os trabalhos colaboram com esse movimento. Expor é uma etapa ainda em esboço, uma tentativa formal de expressar opiniões, é uma flecha, um gérmen, um indício. As noções mais concretas sobre o que se busca tornam-se mais próximas e mais claras na medida em que se distanciam dos filtros adquiridos na autoria, autonomizando-se numa densidade que não é mais particular, é compartilhada. O sentido público não é impresso pela autoria, mas a autoria é parte na constituição desse sentido, e diga-se: parte não privilegiada.

Ana Lira nunca aproximou-se para se mostrar. Todas as vezes trouxe consigo a novidade de um intercâmbio singular na mescla de pessoalidade e postura política. Agencia ideias numa oralidade costumeira. Consigo, sempre um outro. Como conclusão, ela reitera o que por vezes é fugidio: o prazer em ser público. Mais que isso, a função política de sê-lo.

O público é o polo que valida uma pesquisa. A força que fazemos para melhorar nossas ações se realiza numa prática da qual o público é a arena prioritária, o sentido para onde todas as coisas idealmente caminham. O “Voto” lembra, enfaticamente, que Ana é público, e me ajuda a formar uma opinião sobre o meio fotográfico. E essa expressão, “formar opinião”, tem no verbo “formar” a sua maior força, pois toda opinião – como os trabalhos expostos ­– manifesta um caráter provisório, é uma espécie de gesto argumentativo que almeja uma maior elaboração, um afinar-se com outras opiniões no seio mesmo do público. Não se trata aqui, portanto, de uma dóxa (opinião) que almeja ser epistême (ciência, no sentido estrito do termo), mas daquela ciência – se quisermos – que Aristóteles chama de… dialética: aquela que parte de princípios partilhados para flertar com a verdade, circular ao redor da mesma sem, contudo, ambicioná-la triunfalmente. Assim, um traço a se ressaltar nesse trabalho é a dinâmica, a procura, o movimento que produz a condição de que um sentido, uma compreensão sobre as coisas, forma-se de um particular inquieto flertando com algo mais amplo. Opiniões se expõem, se esmerilam, se afinam, e nossa formação se dá, nesse sentido, quando estamos num estado repleto de público, soma de um mundo vivo e partilhado.

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© Ana Lira

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© Ana Lira

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© Ana Lira

[1] O livro traz um texto escrito a quatro mãos, por Marcelo Pedroso e Felipe Peres, cineastas que moram em Recife e são integrantes do projeto Vurto www.vurto.com.br, e outro, de Eduardo Queiroga, fotógrafo e pesquisador, doutorando da UFPE.

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Fotógrafo e diretor de cena, sua atuação profissional se articula entre a produção fotográfica e a pesquisa teórica em torno desta linguagem.

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