É bem conhecida a história contada por Nadar que Balzac não gostava de posar com medo de ser “descamado” pela câmera. Mas esta não era a única fantasia que atormentava os modelos durante a lenta transmigração da aparência que caracterizava o ato fotográfico naqueles tempos. Havia também quem receasse ser sugado pela objetiva. Existem relatos, particularmente de mulheres, que declararam sentir seus olhos sendo atraídos para dentro da lente da câmera enquanto eram fotografadas. Acredito que boa parte do escândalo em torno de Fading Away (1858), de Henry Peach Robinson – fotografia romanticamente encenada de uma jovem em seu leito de morte – não se deveu apenas à suposição de que se tratasse de registro real e, portanto, intolerável invasão de privacidade para o bom gosto vitoriano, mas pela possibilidade de que uma tomada fotográfica “real” tivesse virtualmente subtraído da moribunda seu último suspiro.
Há uma respiração suspensa em toda fotografia. Algumas vezes, porém, a expiração que lhe sucede torna-se a própria razão de ser da imagem.
Robert Barry destampa o recipiente. Ele recua alguns passos até onde a câmera está devidamente assentada sobre o tripé e dispara. Outra fotografia límpida e precisa foi realizada. Mas não há ninguém em cena e a parte do mundo que o quadro recorta está tão longe do pitoresco que dificilmente poderia ser chamada ‘paisagem’. No entanto, nunca o caráter testemunhal da fotografia foi explicitado de modo tão cristalino. A Série Gás Inerte, de 1969, é evidência em estado puro, pois nela a distância entre acontecimento e registro foi inteiramente abolida. As extensas legendas das imagens não deixam qualquer margem à dúvida: “Crípton, de um volume medido a uma expansão indefinida. Em 3 de março de 1969, em Berverly Hills, California, devolveu-se à atmosfera um litro de crípton.” Ou: “Hélio. Na manhã de 6 de março de 1969, em algum lugar do deserto de Mojave, na California, dois pés cúbicos de hélio foram devolvidos à atmosfera”. E, a seguir, Xenon nas montanhas, Argon na Praia.
Muitos se perguntaram naquele momento – e muitos ainda o fazem hoje: qual é propriamente a “obra de arte” aqui? Seguramente, não a fotografia, porque esta afinal não apresenta nenhum dos atributos estéticos que, em qualquer tempo, vieram a caracterizá-la como tal. Seria mais seguro dizer que o gesto artístico propriamente dito seria a liberação do gás. Mas, esta resposta também é insatisfatória, pois que sentido tem o registro fotográfico de obras de arte invisíveis?
Quando nos colocamos diante destas duas impossibilidades, nos damos conta que o ato fotográfico não opera aqui como interrupção do fluxo temporal ou do movimento. Ele é o corte que separa a fotografia daquilo que se vê. E, ao mesmo tempo, documenta um processo que, como tal, é simultaneamente imperceptível e interminável: a expansão dos gases liberados por Barry, por menor que tenham sido seus volumes originais, continua a ocorrer até os dias atuais.
A legenda que acompanhava cada fotografia trazia ainda uma noção crucial: devolução, retorno. Walter Benjamin perguntou-se uma vez: “Não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?” De fato, toda expiração é uma devolução: liberação do que estava aprisionado, do que havia sido apartado da atmosfera e que agora pode retornar à mistura original na qual todos nós estamos mergulhados.
Hollis Frampton coloca a fotografia sobre a espiral de um fogão elétrico. Um plano principia. Até quando é possível sustentá-lo? O plano cinematográfico está condenado à extinção desde o primeiro frame. Se a experiência da imagem que congela, da pausa, da “tomada fotográfica do filme”, é “tão forte”, propõe o teórico francês Raymond Bellour, é porque “joga com a sentença de morte”. Só diante da fotografia, o cinema tem oportunidade de contrair toda a sua história. Uma história finalmente liberta da diegese, uma história de fotogramas impossíveis, tal como buscou realizar Goddard em sua(s) História(s) do Cinema.
A imagem congelada no monitor de vídeo é um cadáver insepulto. É tanto o fim da história como a história sem fim. Em (nostalgia), filme de Hollis Frampton, as imagens ardem. Elas têm um corpo. É preciso que a fotografia esteja de algum modo “fora do filme”, é preciso que haja aqui uma distância, pois toda vez que a fotografia ganha corpo, o cinema revigora o estatuto da própria transparência. São doze fotografias, como doze horas de um relógio que jamais detém sua marcha. Por isso, as memórias que cada uma delas evoca, na voz do narrador, já não pertencem a ela, mas à “hora” seguinte. Por isso, as fotografias queimam.
Queimam em efígie. Queimam no lugar do cinema (e do vídeo), condenado desde sempre a uma luminosa incorporeidade. No Tibete, não é raro que fotografias sejam queimadas junto com o corpo do retratado de modo a recolocar em circulação toda a matéria que lhe tenha servido de encarnação. Favorecem-se assim os percursos futuros do espírito e evita-se o desequilíbrio do mundo (do mesmo modo e pelo mesmo princípio que uma das moléculas de gás liberadas por Robert Barry pode estar sendo respirada, neste momento, por algum leitor deste texto).
Queimam em memória. Pois se faz ali o luto da imagem, no esforço derradeiro para que do enigma da chama seja possível extrair seus derradeiros conteúdos de verdade, exalados, como últimos suspiros, em meio à fumaça. Esta verdade não é outra senão uma promessa de corpo que cada imagem mantém guardada consigo. Uma promessa que jamais poderá ser cumprida plenamente, e para a qual o holocausto é a única possibilidade de redenção.
Sobre esta imagem que arde o plano se detém. Dizê-lo assim é demasiado pouco, pois em face dela o plano também se consome. Não se trata apenas de uma coincidência, mas de um pacto (como aquele que celebram os amantes que preferem morrer juntos a viver separados). O gesto incendiário presta assim uma última reverência a este tempo outro da fotografia, o tempo da sua consumação.
Há uma disjunção fatal entre o que se olha e o que se vê, entre o que se vê e o que se diz, e entre o que se lembra e o que se mostra. Tudo expira.
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* Texto inspirado pela obra “Expiração” do artista mineiro Pablo Lobato que participa do Programa Rumos Artes Visuais do Instituto Itaú Cultural (2011-2013).