Aparentemente, a vocação mais natural de toda teoria é definir “o que é” seu objeto de análise. Nossos debates acadêmicos se consolidaram colocando uma questão dessa ordem: o que define a especificidade da fotografia? Chamamos essa perspectiva teórica de “ontológica”. Ontologia é, em resumo, o campo da filosofia que se pergunta sobre o “ser das coisas” ou, para dizer mais facilmente, “o que as coisas são, em sua essência” (a ontologia clássica fala em “substância”). Perguntar-se sobre o “ser” da fotografia é buscar aquilo que lhe concede uma identidade singular, aquilo sem que a distingue de outras linguagens, de outras imagens, aquilo sem o que algo não pode ser chamado de fotografia.
Quase todos os escritos sobre fotografia, desde sua invenção, resvalam em questões semelhantes. Mas foi provavelmente André Bazin quem delineou mais claramente tal abordagem, com um artigo célebre de 1945: “Ontologia da Imagem Fotográfica”. Os anos 60 e 70 viram surgir uma profusão de trabalhos que seguiam nessa direção, boa parte deles, ancorados nas possibilidades de aplicação das teorias lingüísticas de Saussure a outras formas de expressão (Barthes, Christian Metz, René Lindekens, Umberto Eco) e, um pouco depois, na difusão do pensamento de Charles Sanders Peirce (Rosalind Krauss, também Eco, e ainda Philippe Dubois e Jean-Marie Schaeffer). A semiologia e a semiótica derivadas desses autores emprestaram ao debate sobre a fotografia um vocabulário mais sistematico, e criaram parâmetros para a distinção dos vários sistemas de signos.
Aqui no Brasil, quem quiser passear pelas diferentes respostas que esse debate produziu, pode se concentrar em três livros, todos eles empenhados em revisar as teorias fotográficas a partir de um repertório peirceano: A Ilusão Especular (1984), de Arlindo Machado, O Ato Fotográfico (1994), de Philippe Dubois e A Imagem Precária (1996), de Jean-Marie Schaeffer. Barthes poderia entrar aqui no lugar do então barthesiano Dubois, mas é este último quem traduzirá o vocabulário peculiar de A Câmara Clara (editada no país em 1984) nos termos mais recorrentes desse debate.
Esses três livros compõem um panorama bastante didático das posições teóricas mais evidentes desse momento. Destacando aquilo que faz da fotografia uma forma codificada de representação (um símbolo, no vocabulário peircenao), Arlindo Machado se opõe à posição assumida por autores “realistas” como Barthes. Sem negar a existências desses códigos, mas retomando Barthes, Dubois se concentra num aspecto pontual que permite à fotografia operar como “marca do real” (como o índice peirceano). Por fim, considerando parcialmente as conclusões de Dubois, Schaeffer opta por retomar, mas de modo muito cuidadoso, a velha noção da fotografia como imagem análoga ao mundo visível (como o ícone peirceano).
Se nos anos 80 esse debate ontológico estava restrito ao ambiente acadêmico, ao final dos 90, já encontrávamos fotógrafos em rodas informais de conversa se perguntando se a fotografia era “essencialmente” ícone, índice ou símbolo. Mas essa discussão se esgotou antes de esboçar qualquer tipo consenso. Assumir uma ou outra posição exigia tantas desculpas, que as exceções se mostravam muito mais interessantes que qualquer identidade prioritária que se quisesse afirmar para a fotografia.
Eis que, em algum momento entre o final do século XX e o início do XXI, as abordagens ontológicas se tornaram rançosas e desinteressantes.
De um lado, elas pressupõem uma “fotografia ideal” (ideal no sentido platônico, um “fotográfico” em estado puro e definitivo). Esse debate foi muito prazeroso, mas parecia tratar de uma fotografia metafísica, pouco vinculada às dinâmicas efetivas que essas imagens assumem no mundo. Quando nos colocávamos diante de uma foto, ela pareceria sempre complexa e impura. Foi assim que nos sentimos convidados a pensar essa imagem em sua diversidade, em sua ambivalência, com suas múltiplas formas de significação, não mais em sua unidade ideal.
De outro lado, enquanto ainda nos perguntávamos sobre o que distingue a fotografia de outras imagens, os artistas passaram a ignorar essas fronteiras e a experimentar todo tipo de interação. Para dar conta disso, passamos a falar numa imagem híbrida, numa fotografia contaminada, numa fotografia expandida (Fotografia Expandida é o titulo da tese de doutorado do meu colega Rubens Fernandes). Instigado por tais possibilidades, muitos pensadores se interessaram mais pelas brechas que ligam a fotografia a outras formas de expressão, do que por aquilo que lhe define uma identidade exclusiva. Mas é verdade que houve resistências: nos debates entre fotógrafos, ainda hoje, ouvimos acusações em tom corporativista: “isso não é fotografia!”
Como exemplo dessas novas abordagens, podemos tomar o livro Entre-Imagens (1997), de Raymond Bellour e, ainda, os trabalhos posteriores de Arlindo Machado e Philippe Dubois. Alguns poderiam observar que esses autores já não estão mais interessados em fotografia, mas a questão é exatamente essa: se não buscamos a especificidade das linguagens, podemos muito bem reconhecer a fotografia em suas discussões sobre o cinema, o vídeo ou a infografia (igualmente tratados como linguagens experimentais e impuras). Essa perspectiva anti-ontológica também é claramente reivindicada por obras mais ou menos recentes, como A fotografia, de André Rouillé (em especial, num capítulo chamado “Miséria Ontológica”).
A busca por uma “essência” da fotografia perdeu seu sentido e o redirecionamento de nossas linhas de pesquisa se tornou urgente no final dos anos 90. Mas, resolvidas as tensões dessa passagem, creio que podemos retirar alguns clássicos de nosso “índex” (a lista de títulos proibidos pela Inquisição). Não se trata apenas de reconhecer a importância histórica desses textos. Pessoalmente, acho que aquele último Barthes e aquele primeiro Arlindo Machado ainda podem nos surpreender. Em nossa relação complexa a fotografia, estamos em condições de reconhecer em suas teses, contraditórias entre si, dinâmicas que convivem numa imagem que se demonstrou igualmente complexa. Ainda precisamos do tom politizado de Machado para perceber o que sempre há de ideológico numa fotografia, ainda podemos nos abandonar ao tom afetivo de Barthes quando somos fisgados por uma presença que reconhecemos como singular. Pensar qual dessas relações é mais verdadeira é mais ou menos como interrogar se somos mais essencialmente um corpo ou um espírito.
O maior problema desses textos é que ficamos presos a uma meia dúzia de frases que se tornaram emblemáticas das intenções ontológicas. É sempre importante considerar o momento da história do pensamento em que uma resposta foi esboçada. Mais importante ainda é aprender a reformular as perguntas que lançamos aos textos do passado. Sem isso, jamais reconheceremos os clássicos.
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