Este texto norteou a conversa com Pio Figueiroa (texto disponível no site da Cia de Foto), no Espaço Veredas, sobre a exposição A Espessura da Travessia. Ali, foram reunidos trabalhos de um grupo de alunos da Pós-Graduação em Fotografia da Faap, realizados a partir da leitura de textos de Platão. As leituras foram conduzidas pela professora a Edilamar Galvão.
Platão, criador de imagens
Como supor que seria possível encontrar em Platão um convite à fotografia. Justo ele que tem fornecido, ainda hoje, duros argumentos contra a produção de imagens.
Platão nos instiga a sair da escuridão da caverna, mesmo que a claridade seja, em princípio, desconfortável ao olhar. De um lado, ele assume a luz como metáfora de um saber que só pode ser alcançado pela razão, de outro, toma os sentidos como aquilo que nos prende à ignorância. No fundo da caverna, as imagens, sombras tão sedutoras quanto enganosas, aquilo que existe de mais distante da verdade (o eidos). Retirar o homem da caverna se desdobra, então, no desejo de expulsar o artista de sua república ideal.
O sacrifício da imagem é, acima de tudo, um exercício filosófico. Na prática, tanto Platão quanto seus herdeiros tiveram que negociar também com as formas sensíveis a razão metafísica que defendiam. Para começar, Platão foi, ele próprio, um grande criador de imagens, a exemplo dessa e de tantas outras alegorias que soube construir tão bem.
Vale pontuar que a crítica de Platão se volta sobretudo para um caráter supostamente superficial da arte grega. Em sua maturidade, ele manifesta simpatia pela arte dos antigos egípcios (Leis), em essência, porque respeitavam um rigor convencional que a livraria a imagem dos movimentos contingentes da natureza física e imporia formas estáveis que apontam para uma dimensão atemporal da realidade. Em seu momento, Platão não poderia ter percebido o quanto a arte grega era, por si mesma, idealizada, apoiada numa geometria que dificilmente se confunde com as formas que a natureza apresenta ao olhar.
Séculos depois, o cristianismo medieval viveria um grande dilema: ao mesmo tempo que herdou dos romanos o gosto pelas imagens, posicionou sua filosofia dentro de uma linhagem de pensamento neo platônica. Em seus momentos mais férteis e menos violentos, esse dilema orientou um riquíssimo debate teológico sobre como deve ser essa imagem que quer representar os valores divinos e eternos (ver os textos de A Pintura, vol. 2, A Teologia da Imagem, compilados por Jacquelinte Lichtenstein). O cristianismo buscou com seus ícones um modelo de representação que fugia das aparências para revelar uma verdade defendida como mais substancial. Trata-se de uma imagem que, sem constrangimentos, poderíamos chamar de platônica.
A invenção do humano
Suponho que Platão não tinha ideia de que as imagens haviam surgido justamente dentro das cavernas. Ele apenas deve ter intuído que o apego às aparências estava ligado a uma condição primitiva de submissão do homem àquilo que de mais imediato a natureza lhe impunha: as aparências.
Situando as imagens na caverna, Platão pretendia demonstrar sua insuficiência. No entanto, sua origem histórica nesse exato lugar pode demonstrar também suas potências. As pinturas do paleolítico são emblemáticas das primeiras tentativas de agir sobre uma natureza que, de fato, parecia caótica aos olhos daquelas comunidades. Como parte desse gesto simbólico inaugural, isto é, como primeiro esforço de dar um sentido a essa natureza, podemos dizer que foi exatamente ali, diante dessas representações, que certo animal se revelou humano. Essa é a hipótese de Werner Herzog, no filme A caverna dos sonhos esquecidos: dentro da caverna, juntamente com aquelas imagens, o espírito humano teria sido forjado.
A tese é incompatível com o pensamento de Platão, para quem a alma é imortal, portanto eterna, “não criada”. Tanto faz se, por meio das imagens, o ser humano forjou ou descobriu sua condição humana. Fato é que, de um modo ou de outro, a imagem participou intensamente desse processo.
A caverna não é, nessa história, um lugar acidental. Assim como suas paredes, as formas da natureza não tinham para aqueles homens contornos muito claros. Eram essas bordas indefinidas e obscuras das imagens iluminadas por tochas que permitiam supor uma continuidade entre suas formas e o mundo.
Se é ali que se revela o desejo negociar com o caos um comportamento acessível ao pensamento humano, podemos dizer que a primeira luz lançada sobre a natureza veio, portanto, de dentro da caverna.
Religações
Platão nos deixa a visão de uma realidade definida por suas formas ordenadas e eternas. Para reconhecer tais formas, ele nos convida a renegar e superar a aparência enganosa e sempre mutante da natureza. Com isso, ele vem consolidar uma cisão entre substância e aparência, entre sentidos e razão, também entre palavra e imagem, que marcará toda a filosofia posterior.
Ainda que esse dualismo seja persistente, Alfredo Bosi (Fenomenologia do Olhar) buscará na história da arte e do pensamento experiências que almejam superá-lo. O Renascimento – e, em particular, Leonardo da Vinci – é para ele o esboço de um modelo bem sucedido.
Como Platão, os eruditos da Renascença buscavam apoiar o conhecimento na constância das leis. Mas, ao contrário do que faz o filósofo grego, eles não precisam renegar a aparência das coisas: eles buscaram intuir essa regularidade dos próprios movimentos da natureza. A ordem, que é ao mesmo tempo matemática e divina, se expressa na natureza física, e não apesar dela. Uma representação disso é o Homem Vitruviano, de Leonardo, cujo movimento corporal revela uma geometria perfeita e, portanto, o diálogo de suas formas com uma razão mais estável.
Superando o dualismo, Leonardo busca compreender tanto a aparência quanto o mecanismo das coisas. Para isso, lembra Bosi, coloca em conjunção suas habilidades como artista e cientista, pensa o corpo ao pintá-lo, contempla-o sua estrutura ao dissecá-lo. O olhar é pensado como “a janela da alma, o espelho do mundo”.
Nesse sentido, o que é a perspectiva proposta pela pintura renascentista? É justamente a tentativa de dar dignidade à uma representação construída a partir de um ponto de vista humano. É também o desejo de extrair desse olhar a referência que estabiliza e hierarquiza todos os elementos da natureza a serem representados. Portanto, a perspectiva representa uma razão que se manifesta por meio dos sentidos.
Excesso de luz
Como um artefato que permite emular esse olhar racionalizado da perspectiva, a câmara obscura já participa dessa história. De certo modo, ela é uma versão sintética daquela mesma caverna em cujas paredes se projetaram nossas primeiras imagens. Só que, agora, aquilo que é escuro – o caráter caótico da natureza – parece ter sido devidamente aprisionado e domesticado.
Vilém Flusser sugere que, confiando demasiadamente no programa técnico que opera de forma automática essa razão, abrimos mão de compreendê-lo. Com isso, essa razão se torna opaca, o aparelho se torna para nós uma “caixa preta”, impenetrável ao nosso entendimento. Ao operar um programa que não compreendemos, passamos a agir em função dele: o fotógrafo torna-se um “funcionário” do aparelho (Filosofia da Caixa Preta).
A confiança na razão constrói por si mesma suas armadilhas. A mesma luz que permite o suposto domínio das suas formas sensíveis, parece agora ofuscar nosso entendimento. Nesse mundo em que a escuridão foi domesticada e as imagens são produzidas a partir do domínio da luz, os herdeiros de Platão se vêem obrigados a repensar o desenho de sua antiga alegoria.
Susan Sontag inicia o primeiro de seus Ensaios sobre a fotografia, “Na caverna de Platão”, dizendo que “a humanidade permanece (…) na caverna de Platão, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade”. Em seguida, ela irá observar que isso está demonstrado pelo caráter voraz da fotografia, que permite ao homem crer que é possível apreender e possuir todas as coisas. Dada a onipresença dessas imagens, fica subentendido que a caverna está agora a céu aberto. Ela é o mundo todo que julgamos ter se tornado plenamente acessível graças à intervenção da fotografia. A ignorância não é mais, portanto, representada pela escuridão.
Saramago também afirma, no documentário Janela da Alma (de João Jardim e Walter Carvalho) que “nunca estivemos tão dentro da caverna de Platão”. As imagens não estão reclusas à escuridão, eles ocuparam o lugar de toda a realidade. Por isso, sua cegueira é branca, luminosa (Ensaio sobre a cegueira).
Por sua vez, o pesquisador brasileiro Norval Baitello parece chegar a um lugar semelhante, vindo pelo sentido oposto. Para questionar uma imagem que, agora, só é capaz de mostrar repetidamente as superfícies das coisas, ele lembra que “as imagens não são, distintamente do que às vezes somos tentados a pensar, subprodutos da luz, formas de luz ou seres do dia. São muito mais, em sua origem e desde então, habitantes da noite, possuem muito mais faces invisíveis do que aquelas que se deixam ver, mantém estreitos laços históricos com o sombrio e com o insondável, com zonas profundas de nós mesmos, com as quais tememos contato” (A era da iconofagia). É um interessante movimento que parece querer reencontrar o potencial da imagem resgatando a força simbólica das imagens que habitavam a escuridão.
No meio do caminho
Quando Flusser convida a abrir a caixa preta, é para novamente “branqueá-la”, ou seja, para restituir como nossa essa razão que define seu programa técnico. Mas podemos aproveitar a ocasião para reivindicar outra tarefa igualmente necessária: reconhecer na fotografia as fissuras que restam na técnica, por onde um pathos transborda daquela escuridão aparentemente domesticada.
Essa mesma imagem que prometia conformar a rebeldia dos sentidos aos modelos de uma ciência racionalista, se mostra com frequência uma das expressões mais permeáveis aos afetos. Ao congelar os movimentos da natureza segundo princípios modelados pela razão, essa imagem continua instável, articulada ao desejo e aos aspectos involuntários da memória.
Esse suposto fracasso aponta para uma potência da imagem, exatamente aquela que já estava anunciada desde as cavernas: não se trata apenas de dar contornos mais ordenados às aparências das coisas, mas de aproveitar as zonas escuras da imagem para estabelecer uma conexão com aquilo que, na natureza, permanece invisível. Na fotografia, há que se assumir os papéis que seguem jogando tanto a luz quanto a sombra.
Voltemos à alegoria de Platão. Podemos imaginar que, saindo do fundo da caverna em direção à luz plena, houve no meio do caminho um lugar privilegiado em que o homem pode perceber um mundo feito de contrastes. Nesse degradê se fazia representar o sentido complexo que a natureza sempre iria reivindicar.
É neste ponto que Platão ainda convida intensamente às imagens? O que se presta a ser pensado por elas não é tanto o lugar das coisas precisas que Platão almeja alcançar; mas sim o trajeto, o seu método: no “diálogo”, a dúvida não é apenas aceitável, mas é efetivamente necessária. Esse é seu grande legado: não tanto as verdades definitivas que, no final das contas, ele não ousou inventariar, mas a dialética, movimento que faz da contradição seu principal combustível. Nesse lugar, a imagem ainda encontra a luz e a sombra de que é feita.
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