Quatro lições de Chris Marker

[24.set.2012]

Viagens no tempo aparecem de forma recorrente na obra do fotógrafo e cineasta Chris Marker, a exemplo do que vemos em seus trabalhos mais conhecidos, o “foto-romance” La Jetée (1962) e, mais sutilmente, em Sans Soleil (1983).

 

Viajar no tempo é algo que ele mesmo faz na relação que estabelece com seus arquivos. Desde seus primeiros trabalhos, ele assume transitar por um terreno instável: os sentidos das imagens. E faz delas o palco em que a história contracena com o presente. Dessas experiências, podemos tirar algumas lições:

1. as imagens se transformam quando confrontam outros discursos

Já comentamos num post anterior o exercício cinematográfico que ele realizou no documentário Carta da Sibéria (1957): ele demonstra o quanto as imagens documentais mais simples podem ser suscetíveis às leituras ideológicas, sobretudo quando se trata, como o seu caso, de falar da União Soviética em plena tensão da Guerra Fria. Para isso, ele associa um mesmo fragmento de montagem cinematográfica a três diferentes trilhas sonoras e narrações em off, mostrando que essas imagens podem sustentar, conforme se queira, posições muito distintas sobre um mesmo objeto.

 

2. as imagens nunca permanecem idênticas a si mesmas no tempo

Em Olympia 52 (1952), Marker tenta captar a atmosfera dos Jogos Olímpicos de Helsinki, o primeiro a ter a participação da União Soviética competindo ao lado dos Estados Unidos. Portanto, momento emblemático da possibilidade de uma convivência pacífica num mundo radicalmente polarizado. Percorrendo competições de diversas modalidades, Marker mostra despretensiosamente, entre os participantes da tradicional prova de equitação, um jovem militar chileno completando com êxito seu percurso. Vinte e cinco anos depois, em O fundo do ar é vermelho (1977), Marker retorna a seus arquivos para repassar os conflitos e convulsões sociais dos anos anteriores, que considera cruciais para o século XX. Num dado momento, ele reencontra a mesma imagem do cavaleiro chileno, identificando nesse momento aquele que viria se tornar o General Mendoza, braço direito do ditador Augusto Pinochet. O diretor então conclui: “nunca sabemos o que filmamos”.

Chris Marker, Olympia 52, 1952

3. as imagens também nos olham

Em Staring Back (2006), exposição fotográfica que percorre meio século de imagens de seu arquivo, Marker parte de uma imagem que mostra os rostos tensos de pessoas num balcão, na Place de la Republique, em Paris, numa manifestação pela libertação da Argélia, em 1961. Ele chama atenção para o fundo da imagem: “olhe a árvore”. Em seguida, percorre uma série de outros protestos, em momentos e países distintos, até retornar ao mesmo balcão, na mesma praça, em 2002, quando jovens se organizam contra a chegada do candidato de direita, Jean-Marie Le Pen, ao segundo turno das eleições presidenciais. Ele então completa: “de volta ao balcão na Place de la Republique, onde todas as manifestações importantes começaram ou terminaram”. Vemos ali a mesma árvore. Marker relata que, enquanto percorria o mundo e assistia à sua reconfiguração, enquanto passava do cinema ao vídeo e do vídeo ao computador, “ela cresceu, só um pouco. Entre essas poucas polegadas, quarenta anos da minha vida”.

Ele busca então os personagens de suas fotos que olharam de volta para ele, explicita ou sutilmente. Mais adiante, mostra personagens e fatos que deseja rever: “eu os mirei, mas não o bastante, não por tempo suficiente”. Staring Back é um duplo movimento: do olhar que retorna à história, e do olhar que a história nos retorna. Um gesto perdido nas imagens pode condensar o testemunho de eventos históricos que nos concernem, de modo que nos sentimos visados por esse gesto que, antes, mal havíamos percebido.

Chris Marker, Staring Back, 2006

4. um autor é o confronto de diferentes sujeitos

Marker sabe que o tempo transforma as imagens e, também, a autoridade desse sujeito – o autor – em que nos apoiamos para buscar nelas um sentido mais estável. Em 2003, convidado a falar de dois filmes relançados num único DVD, ele disse: “vinte anos separam La Jetée de Sans Soleil. E outros vinte anos até o presente. Nestas condições, se eu pudesse falar em nome dessas pessoas que fizeram esses filmes, não seria uma entrevista, seria espiritismo”.

Baudelaire dizia que “o poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro”.  Chris Marker – que não é seu nome verdadeiro – aparece em vários trabalhos sob outros pseudônimos e alteregos, quase sempre reconhecíveis, mas um tanto diversos. Sua biografia é obscura e raramente encontramos um retrato seu. Houve quem afirmasse que ele não existe, e Alain Resnais, seu amigo e parceiro em vários filmes, afirmava algo não menos curioso: “há uma teoria que circula e que não é sem fundamento, segundo a qual Marker seria um extraterrestre. Ele tem a aparência de um humano, mas ele vem talvez do futuro ou de um outro planeta. Talvez do futuro, o que nos faz pensar que a raça dos terráqueos se parecerá com Marker em alguns séculos”.

Chris Marker morreu há dois meses. Mas, levando em conta suas lições, ainda veremos seus trabalhos futuros.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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