Quantos anjos cabem em uma fotografia?*

[18.jun.2013]

Muita gente se espanta que brilhantes filósofos medievais, como Tomás de Aquino e Duns Scotus, tenham dedicado tanto tempo a discutir quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Mas, ao contrário do que hoje se supõe, essa pergunta não era despropositada. E debatê-la não era jogar conversa fora. Significava, entre outras coisas, perguntar-se em quantas mínimas partes (“átomos”, dizia-se, em grego) uma substância poderia ser dividida. Tanto que, em 2001, um físico quântico, Anders Sandberg, teve a pachorra de fazer a conta e estimou essa quantidade que 8,6766 x 1049 anjos (viva a Wikipedia!).

O problema dos anjos no espaço, portanto, foi relativamente fácil de resolver. Levou uns 800 anos, apenas. Bem mais difícil é o problema dos anjos do tempo. No Talmud – extenso comentário judaico às leis de Deus, escrito durante os primeiros séculos da nossa era –, podemos ler que “anjos são recriados a cada instante em multidões inumeráveis para cantar seu hino a Deus antes de serem destruídos e desaparecer no nada.”

Assim, enquanto os anjos bailarinos ocupam-se do espaço, os anjos cantores ocupam-se do tempo. Ou melhor, das qualidades singulares e únicas, de cada instante no tempo, pois a cada instante corresponde um anjo específico, insubstituível. Estes são os anjos da guarda dos acontecimentos.

Há séculos, a pintura tem se ocupado dos anjos do espaço. Quase sempre são representados como pequenos seres gordinhos, habitando as nuvens. Mas os anjos do tempo, os guardiães dos momentos únicos, só se tornaram visíveis com a fotografia.

Desde as últimas décadas do século XIX, a fotografia cruzou o limiar do instantâneo. Mas os primeiros fotógrafos que se aventuraram a explorar suas possibilidades tinham nos olhos nublados pela retina dos cientistas. Cronofotógrafos como Eadweard Muybridge, Etienne Jules-Marey e Albert Londe estavam interessados nas trajetórias, no fracionamento das poses, na fisiologia do movimento: o homem que salta, a mulher que desce a escada, o jovem que chuta uma bola, não passavam de seres espaciais, cujo movimento era expresso por uma sucessão de posições. Foi preciso que uma criança, uma criança-prodígio, tomasse para si o aparelho para que outra qualidade do instantâneo surgisse. Essa criança de olhar não-domesticado pela arte e pela ciência foi Jacques-Henri Lartigue. O primeiro fotógrafo a revelar no interstício dos instantes, os anjos do tempo.

Lartigue cresceu em uma época em tudo acelerava, os meios de transporte, o cinema, as comunicações; a própria velocidade da luz, com a relatividade de Einstein, tornava-se o novo paradigma da física. Mas era antes a luz da velocidade que a velocidade da luz que lhe interessava. Pois ele próprio, o menino, é fugaz. Fugaz como as coisas que lhe cercam. Na sua nona elegia, o poeta Rainer Maria Rilke evocou o ponto de vista dos anjos do tempo, o ponto de vista de quem vê as coisas em seu “caminho de saída”

E tais coisas, que vivem
do perecer, compreendem que as celebres; efêmeras,
crêem que nós, os mais efêmeros, as podemos salvar.
Querem que em nosso invisível coração as transformemos —
oh infinitamente — em nós. […]

O fotógrafo-menino nos conta que se interessava pela “vida que passa”. Como o poeta, celebra a efemeridade das coisas, sua passagem, sua transitoriedade. Mas ele não as examina, não as diz de fora. Ele as vê do interior de seu movimento, porque o movimento delas e seu próprio movimento têm a mesma natureza. Ele as flagra em sua perpétua transformação, do interior de sua própria metamorfose de menino que cresce. O nome desta simultaneidade entre as coisas e o fotógrafo não é sincronicidade. É simpatia.

Simpatia: assim o filosofo Henri Bergson denominava o movimento que nos transporta para o interior de um objeto para “coincidir com o que ele tem de único e que, em conseqüência, resulta inefável”. Por meio da simpatia, o jovem Lartigue não apenas fotografa o Grande Prêmio que transcorre diante de seus olhos, mas ele se transporta para o interior do carro: fotógrafo, automóvel, piloto – um só movimento. O que a fotografia do jovem Lartigue nos exibe é o movimento selvagem, antes que o instantâneo tivesse sido civilizado pelo cinema e pela linguagem da fotografia moderna. Menino-prodígio. Criança-selvagem.

Jacques-Henri Lartigue, Grande Prêmio, 1912

Jacques-Henri Lartigue, Grande Prêmio, 1912

Já adolescente, ia de segunda a sexta ao Bois de Boulogne fotografar as belas moças que por ali passeavam, desfilando seus magníficos chapéus. Lartigue tinha fascinação por chapéus femininos como se fossem indícios de uma potência oculta de voar. Uma potência que só este dispositivo mágico chamado câmera fotográfica era capaz de revelar.

Escrevi que ia todos os dias, mas isto é apenas calendário. Em suas fotografias é sempre domingo. Lartigue foi o maior de todos os fotógrafos de domingo porque tinha aquilo que Theodor Adorno chamou “olhos sabáticos”. Os olhos sabáticos são aqueles capazes de redimir a beleza ameaçada por uma cultura onde tudo que vemos torna-se coisa útil, torna-se algo posto a nosso serviço. Os olhos sabáticos (os olhos de domingo) são aqueles “que fazem justiça a tudo que existe”: “olhos que se perdem nessa beleza única”, escreve, “e que salvam no objeto algo da calma do dia da criação”. Mas a beleza que estes olhos revelam nunca é universal, nunca é o belo dos estetas esnobes. É sempre uma beleza particular, singular, contingente, instantânea, feliz.

Jacques-Henri Lartigue, Avenida do Bosque, 1911

Jacques-Henri Lartigue, Avenida do Bosque, 1911

Talvez não haja melhor imagem para resumir a obra de Lartigue, a obra fotográfica de uma vida, que o transcurso de um longo e interminável domingo. Nos seus álbuns de juventude, é sempre de manhã. Nas fotografias da maturidade, também é domingo, mas ao entardecer. Ainda a mesma simpatia, mas agora atravessada pelo silêncio, pela serenidade e pela música, que tanto amava.

– Quantos anjos cabem em uma fotografia? Na verdade, não sei. Quantos instantes felizes cabem em nossas vidas? Quantas vezes podemos nos libertar da utilidade das coisas e mirá-las com olhos de criança, como se acabassem de ter sido criadas?

As fotografias de Lartigue estão povoadas de anjos: suas primas e primos, principalmente, que saltam, mergulham, correm, piruetam e pivoteiam. Estes seres não são apenas os personagens, o assunto, o objeto de suas imagens. São os anjos do tempo capturados em pleno voo, assinalando para nós a singularidade de cada instante, celebrando em cada imagem a experiência única do seu acontecimento.

Jacques-Henri Lartigue, A prima Bichonade, 1905

Jacques-Henri Lartigue, A prima Bichonade, 1905

Em uma fábula antiga, do grego Esopo, há um atleta que se vangloria de ter realizado um grande salto sobre o Rodes, mas, infelizmente, não dispunha de testemunhas para comprová-lo. Um gaiato que escutava a conversa intervém: “Não há problema”. E, apontando para chão, provoca: “Aqui está o Rodes, salta aqui!”.

O desafio ficou célebre na tradução latina de Erasmo: “Hic Rhodus, hic saltus!”. Muitos séculos depois, em um livro absolutamente improvável – Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito –, Hegel fez uma paródia deste mote, escrevendo: “Aqui está a rosa, dança aqui”. Pois para o filósofo, nenhum indivíduo poderia saltar para além do seu tempo. Mas isto não deveria ser jamais motivo de lamentação. Antes de ser um grilhão que nos constrange, este vínculo ao presente é uma rosa – a alegria do pensamento, aqui e agora.

– Hic saltus! Hic salta!

Pula aqui! Dança Aqui! – convida o menino, com a cabeça enfiada na câmera. Nas fotos de Jacques-Henri Lartigue, os anjos do tempo também sabem dançar.

 


* A propósito da exposição dedicada a Jacques-Henri Lartigue, que inaugurou semana passada no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.

Mais informações sobre a exposição, no site do Instituto Moreira Salles

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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