Arte, instituição e segurança: subir escadas sem segurar no corrimão

[16.jan.2017]

No lugar mesmo: uma antologia de Ana Maria Tavares é uma das exposições imperdíveis que estão agora em cartaz em São Paulo. Ela permite enxergar a extensão de uma pesquisa muito coesa e ainda em curso, que desdobra problemas colocados inicialmente pela escultura numa diversidade de linguagens.

O resultado é imponente: a artista é meticulosa com a apresentação de cada trabalho, as formas e os materiais têm forte apelo sensorial, e as instalações de grande porte e a intervenção nas paredes da Pinacoteca ocupam efetivamente o generoso espaço que foi destinado a essa retrospectiva. Vale a pena ver.

Ana Maria Tavares, Parede Loos

Neste momento, gostaria de discutir um aspecto secundário da exposição, um sintoma que não lhe é exclusivo. Ao contrário, algo que é muito recorrente em trabalhos contemporâneos que foram consagrados, que ficam entre o coloquialismo do presente e a solenidade da história; que é próprio também das instituições de arte que assumem a missão de manter a vitalidade dos objetos que exibem e, ao mesmo tempo, de conservá-los.

Muitas obras de Ana Maria Tavares são feitas de materiais industriais que reconhecemos da vida cotidiana (metais, vidro, acrílico). Outras tantas, de técnicas populares que dão aos objetos um ar aconchegante e familiar (tramas, tessituras, bordados). Há trabalhos que assumem a forma de objetos utilitários (corrimãos, apoios, suportes, assentos) e muitos deles são efetivamente feitos para serem usados ou colocados em movimento. No entanto, a exuberância da montagem deixa um sentimento ambíguo: as obras convidam à aproximação mas também impõe certo respeito, fica uma vontade de tocar os objetos e também um receio de sujá-los com nossa impressão digital.

A Pinacoteca fez um esforço claro para comunicar ao público as regras do jogo: as obras estão identificadas ora com “mãozinha”, ora com “proibido mãozinha”. Na prática, não é tão simples, porque a sedução dos objetos é mais ágil que o tempo exigido para encontrar esses pequenos ícones. Ou porque alguns objetos com “mãozinha” só devem ser manipulados por pessoas autorizadas pelo museu. As hesitações do público e a tensão dos funcionários foram visíveis ao longo da exposição. As dificuldades eram ainda maiores com as crianças e com o público estrangeiro.

As restrições certamente têm justificativas: há ali questões de segurança, tanto das obras quanto do público. “Exit”, em especial, uma escada de avião colocada no saguão central forrado de espelhos, produz um efeito vertiginoso e exige uma fiscalização ostensiva: pode subir, mas só um por vez; deve-se segurar no corrimão, mas não se deve tocar certas partes da obra; você pode fotografar a obra, mas não pode tirar foto de cima dela; havia no topo um fone de ouvido, mas um segurança rapidamente pedia para não tocar nele porque estava desativado.

Ana Maria Tavares, Exit III com Parede Niemeyer

Nada disso tira o valor da montagem. Ao contrário, é uma boa oportunidade para entender os desafios de uma instituição dedicada à arte, que precisa estabelecer regras, mas que se dedica a uma experiência que tem grande vocação para desestabilizá-las. O título da exposição (No lugar mesmo)  já traz em si essas tensões: Ana Maria Tavares está ali por afinidades já constituídas, já que a Pinacoteca é “o mesmo lugar” de sua primeira individual. Mas, se é possível retornar a ele depois de tanto tempo, é justamente porque o espaço está disposto a se transformar radicalmente no lugar mesmo, isto é, no lugar preciso que a obra exige hoje. Só que, diante do público, essa precisão rapidamente mostra sua insuficiência: mesmo que – essa palavra agora no sentido negativo de “apesar” – esse seja um lugar preciso, ainda se reivindicará dele novas aberturas, sempre se encontrará nele frestas que serão ocupadas. A palavra “mesmo” é uma espécie de apêndice duvidoso fadado ao jogo, como Octavio Paz já havia apontado ao analisar “A noive despida por seus celibatários, mesmo”, de Duchamp (Marcel Duchamp ou O castelo da Pureza).

Esses atritos entre instituição, obra e público não são algo a se evitar. Eles são por si mesmos estéticos. Talvez seja interessante antecipar-se a eles, tratá-los de forma propositiva dentro de um projeto educativo, não da forma reativa de uma estrutura de segurança.

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A exposição está em cartaz na Pinacoteca de São Paulo até 10/04/2017.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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