Esses dias, li uma entrevista com Sebastião Salgado na revista Serafina (disponível on-line apenas para assinantes), da Folha de S. Paulo, publicada no domingo passado. Aí fiquei pensando: porque paramos de falar de Sebastião Salgado? Pra dizer a verdade, nem tenho certeza de que paramos, mas tenho a impressão de não ter ouvido quase nada sobre ele nos últimos anos. Não tenho lido artigos, o nome dele não é citado nos debates e palestras dos colegas. Apenas vez ou outra ele aparece como notícia.
Engraçado que, nas minhas aulas, mais cedo ou mais tarde alguém sempre perguntava: o que você acha de Sebastião Salgado? Hoje, ninguém pergunta mais.
É uma questão honesta, não tenho idéia do que aconteceu. Como eu não tenho acompanhado muito o fotojornalismo, eu posso muito bem ter perdido alguma coisa. Mas, até que alguém me explique, vou especular:
– Talvez esteja tudo bem. Apenas se tornou muito óbvio falar de Sebastião Salgado: pra que falar dele se todo mundo fala dele? Aí, ninguém falou mais dele.
– Talvez as pessoas tenham se saturado dele por conta de um processo de celebrização. Cansamos de Sebastião Salgado, como cansamos de toda superexposição.
– Talvez ele tenha se tornado uma figura messiânica demais e, como somos céticos, temos a obrigação de desconfiar de alguém que aparece de repente para salvar o mundo.
– Talvez guardemos algum ressentimento. Nos anos 90, comemoramos seu sucesso. Mas o “bom filho” não tem retornado muito à casa, e passamos a assumi-lo como estrangeiro.
– Talvez as pessoas não gostem mais do seu trabalho. Talvez condenem o excesso de pose: Sebastião Salgado manipula a realidade através de sua fotografia!
E por aí vai. Talvez um pouco de cada coisa, e de outras tantas.
Êxodos
Quando Salgado lançou o livro Êxodos, eu gostei muito, e gostei mais ainda por uma circunstância muito pessoal. Eu tinha acabado de traduzir um livro de Pierre Lévy, filósofo franco-tunisiano, um dos primeiros a produzir um pensamento denso sobre as novas tecnologias. Mas a obra que me propuseram, World Philosophie (que virou A Conexão Planetária), representava um momento de deslumbramento de Lévy com o mundo. Ele falava da liberdade trazida pelas redes e pela economia globalizada. Era lindo poder ser um cidadão do mundo, trabalhar e pensar em colaboração com pessoas tão distantes, dormir num país e acordar em outro. O mundo começava a abrir suas fronteiras, era fácil ver como as pessoas se deslocavam e diluíam o mapa.
Aí chegou em casa o livro Êxodos, e foi fácil entender que esse grande fluxo de pessoas se deslocando pelo mundo não é necessariamente produto de uma liberdade, mas de um exílio. Para mim, a tese de Salgado era mais convincente do que a de Lévy. Gostei das imagens, gostei do choque de realidade e gostei principalmente de poder ver um pensamento ser desenvolvido por meio de imagens.
Mostrei esse trabalho em algumas aulas, falei um pouco sobre ele, mas passou. Os outros livros que ele lançou, cheguei a ver por aí, mas não comprei. Eu esqueci Sebastião Salgado. Portanto, dali até a leitura da entrevista na Serafina, tem uma história que eu não acompanhei.
Serafina
A revista se propõe a comentar Gênesis, o novo trabalho, mas começa de fato desenhando uma celebridade: avisa que levou um ano e meio para conseguir a entrevista e que, logo após o encontro com a reportagem, ele estaria lotado de compromissos. Dentre eles, uma viagem à África “para passar um tempinho com os Pigmeus”. Essa frase, entre aspas, deve ter sido dita por ele. Mas, colocada desse modo, soa como a Madona fazendo turismo social entre um show e outro. Em seguida, a jornalista descreve sua roupa e explica como ele consegue manter sua careca tão reluzente mesmo quando está na Patagônia ou em Galápagos.
Difícil saber de quem é a culpa, mas a revista aponta para um ecologismo estranho, com frases do tipo: “a iguana é minha prima”. Tudo isso soa menos complexo do que as grandes questões sobre a exploração da força de trabalho ou sobre os deslocamentos populacionais que víamos nas outras pesquisas.
Como todo romântico, Salgado é nostálgico: “busco terras que permanecem iguais desde o começo da criação, humanos que representam os seres que fomos há milhares de anos”. Mas, nas palavras da revista (a legenda de uma foto), isso vira um Darwinismo mal interpretado e desastroso: “Os mentawai consideram a natureza uma divindade. Estão no estágio evolutivo da domesticação das plantas e animais”. Qual estágio evolutivo? Assim, alguma coisa entre o Neanderthalensis e o Sapiens?
As imagens… Bem, mesmo que não seja o tipo de fotografia que mais me interessa, as imagens são exuberantes. Alguns certamente dirão que são muito publicitárias: a foto dos tais “mentawai” até parece ter sido feita com um fundo infinito. Mas, pra mim, esse é um problema menor. Não me incomoda a manipulação da cena, assim como não me comove o fato de que ele ainda produz negativos, contatos e ampliações, mesmo depois de adotar uma câmera digital. As imagens continuam lindas, humanistas, com cinzas profundos, como sempre foram. Sustentar todas essas características, assim por tanto tempo, é o que me surpreende sempre que o vejo, mas é provavelmente o que também me faz esquecer dele.
Mas um fotógrafo que tem uma tese e que passa anos desenvolvendo-a através de imagens, já merece nosso respeito. Eu estranho o pensamento que Salgado parece querer construir com esse trabalho: aparentemente, a defesa e a busca de um paraíso perdido. Mas é preciso dar todos os descontos. Se ele encontrou na fotografia uma forma precisa e poderosa de expressão, não poderíamos querer que seu discurso permanecesse íntegro numa entrevista apressada.
Nesse sentido, vale a pena esperar esse trabalho ser apresentado do modo como ele foi planejado. E vale a pena esquecer entrevistas como a de Serafina e posts como este, que pouco ajudam a lembrar de Sebastião Salgado.
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