Como já discutimos largamente, os discursos e as análises acerca das imagens e, sobretudo, das imagens fotográficas, que caracterizaram o campo teórico até a década de 1980 já não parecem encontrar tanta ressonância na realidade do mundo contemporâneo. As investigações que, como sabemos, desejavam saber o que a fotografia era em si, pensar a fotografia contra o cinema, identificar o irredutível fotográfico, não parecem fazer tanto sentido diante dos processos atuais de produção, difusão e recepção de imagens.
Com efeito, as investigações acerca das relações transversais entre as imagens, as lateralidades entre diversos dispositivos imagéticos, as transgressões de fronteiras imagéticas, as intromissões mútuas entre modos de circular, produzir, enviesar e hibridizar imagens não são mais, já há algum tempo, novidades nem nas reflexões acadêmicas, muito menos no campo das experimentações artísticas.
Sim! Todas as famílias de imagens se contaminam, se interpenetram, dialogam! Nenhuma das imagens do mundo contemporâneo (e muito provavelmente do passado também) parece hoje suportar ser pensada como se não dialogasse com outras imagens (nessas relações de contágio, as imagens atuais estão tingidas também por toda sua história, pela história da pintura, do cinema, do vídeo, da literatura, da ciência e, também, pelas imagens dos sonhos e da memória.
Sim! A constituição da subjetividade contemporânea exige entrever o aspecto transitivo das imagens, levar em conta a diversidade de materialidades e operações que se efetivam hoje.
No entanto, tão relevante quanto identificar novos objetos teóricos a partir desse estado inédito de transversalidade, parece ser questionar se seria possível realizar trânsitos se não estabelecemos distâncias.
A contaminação supõe contato entre organismos (ou corpos) distintos. A transgressão supõe “ação que leva algo ou alguém a atravessar uma fronteira”. O trânsito supõe a passagem de um lugar para outro, de um estado para outro, de uma qualidade para outra. A violação supõe esgarçamento de bordas.
Se estamos diante de um único território de imagens, homogêneo em sua variedade, poderíamos diante disso, efetuar transgressões? Diante de um território único, sem fronteiras entre imagens, poderia haver trânsitos? Como nos deslocar num território sem distâncias?
Quais são as condições para que haja contágios entre os modos imagéticos?
Estabelecer as condições de possibilidades para encontros e trânsitos não significa reestabelecer as perspectivas ontológicas, ignorando aquilo que se move, se difere e se altera; ignorando a diversidade de “fotografias” que a história efetivou.
Cabe ressaltar, aliás, que, algumas vezes, a propósito de se pensar o híbrido, algumas análises adotam estratégias semelhantes às ontológicas, uma vez que procuram − geralmente a partir de uma lógica de causa e feito entre novas tecnologias e imagem − definir um único modus operandi desse “cruzamento genético”, um único modus vivendi das imagens contemporâneas.
Quando se opera estritamente numa lógica de causa e feito entre tecnologia e imagem, em vez de desterritorialização, estriamento, multiplicidade, linhas de fuga, aparece, algumas vezes, no discurso do híbrido profunda territorialização.
Nesse determinismo, o território seria definido pelas tecnologias digitais, responsáveis pela mudança de natureza da imagem. Nada, portanto, nenhuma materialidade imagética, nenhuma família de imagem poderia entrever novos agenciamentos, novas temporalidades nem produzir mutações nos modos de perceber, conhecer e habitar o tempo por meio da imagem.
Acredito que o desafio do pensamento acerca das imagens em nossa atualidade é compreender esse novo circuito de imagens, vinculado a uma nova rede de dispositivos, perspectivas filosóficas, científicas e práticas sociais, profundamente hibridizante e virtualizante, sem que a multiplicidade das imagens seja eliminada sob uma perspectiva homogeneizante.
Num território sem distâncias ainda poderiam nascer fotografias? Ou filmes, ou contos, ou paisagens, ou pinturas, ou romances…? No território sem fronteiras, só poderia emergir apenas uma constelação de imagens.
Cabe lembrar que a definição de uma área da esfera celeste denominada constelação requer agrupamentos regulares em torno de padrões que, no entanto, ligam imaginariamente o que, embora aparentemente próximo, não está nem no mesmo local, nem possui grandeza, distância ou, até, idade idêntica. A constelação requer, portanto, espaços heterogêneos entre pontos luminosos. O centro das constelações é vazio; não podemos reduzir a ‘característica’ da constelação a uma unidade nela contida; as marcas que definem o traçado de toda constelação são seus extremos; entre seus componentes existem lacunas, do que resulta ser necessário, para sua ‘contemplação’, que se entrevejam distâncias.
A força da hibridização contemporânea está (me parece) na alquimia produzida pelo que cada modo imagético veio a ser, tanto historicamente quanto em seus usos atuais. Essa grande constelação híbrida nos possibilitaria, hoje, observar a ‘vida’ e a história das imagens num grande mapeamento anacrônico, talvez como nunca antes tenha sido possível.
Assim, a potência híbrida está, a meu ver, no trânsito entre diferentes estados imagéticos, permitindo que um filme possa ser compreendido como fotografia; um romance como pintura; uma instalação como conto − e, também, que a história, como Walter Benjamin pensou, pudesse ser fotográfica.
Bem, se só existe hoje um único território de imagens, ele não poderia ser compreendido como um chão liso, constituído por única família de imagens, com substâncias de mesma espécie. Para contemplá-lo, do modo como fazemos com as constelações celestes, é necessário entrever espaços vazios, distâncias temporais, lacunas e interrupções entre seus componentes, uma configuração saturada de tensões.
Afinal, como poderíamos nomear fotográficas quaisquer imagens dessa grande constelação imagética da atualidade?
Importante dizer que nosso diagnóstico deverá depender profundamente da perspectiva histórica que adotamos. Se nosso parâmetro estiver fundamentado exclusivamente numa história da técnica, linear e evolutiva, provavelmente estaremos diante de um grande impasse: como denominar fotográfica qualquer uma das imagens atuais se elas provêm de dispositivos convergentes que pouco têm a ver com as câmeras que deram ‘origem’ a um ato essencialmente fotográfico?
Dificilmente podemos comparar os aparelhos atuais aos sistemas analógicos; o que temos hoje em nossas mãos são câmeras que convergem distintas operações na captura da imagem: a câmera que fotografa é a mesma que filma (a câmera dos fotógrafos é a mesma dos cineastas), e, em certo sentido, a mesma que pinta, cola, desmonta, monta e faz circularem nossas imagens. Além disso, ela não mais captura quimicamente a marca do real, não estabelece, portando, a famosa contiguidade que configurou muitas das análises ontológicas. Partindo dessa perspectiva tecnológica, portanto, haveria uma mudança de natureza e não poderiam mais nascer imagens fotográficas.
Se tivermos como referência uma história estritamente dos usos e da percepção da fotografia, também enfrentaremos, me parece, uma profunda impossibilidade, já que a passagem do regime disciplinar para a sociedade do controle implicou a transmutação de uma cultura visual para um regime de visibilidade, cuja circulação difere verticalmente do que constituiu historicamente o tipo fotográfico de imagem.
Falemos, então, acerca de sua possível sobrevivência histórica. Como já tratado em artigo anterior, a sobrevivência fotográfica é, de fato, bastante enigmática. Hoje, em meio a tantas tecnologias inovadoras, tantos cruzamentos imagéticos, tantas performances midiáticas, como poderíamos ainda nomear fotográfica qualquer imagem? Como poderia a fotografia não ter sido totalmente tragada pelas outras famílias de imagens que não cessam de se multiplicar e fundir? Não teria de fato sido tragada?
A despeito dos prognósticos mais acurados de teóricos e pensadores da mais alta qualidade, que avistavam apenas o declínio histórico da fotografia e seu desuso prático; a despeito da diminuição de sua eficácia e de seu poder, a fotografia persiste. Persiste disseminada, dissimulada, transmutada em várias imagens, vários objetos. Uma persistência da qual só conhecemos restos, vestígios da carne que foi convertida em ‘outramentos’. Persiste e, paralelamente, se transforma.
Persiste como um fóssil: não um objeto do passado, mas um amálgama que cristaliza as diferenças e as sincronias entre aquilo em que ela veio a ser (na modernidade) e o que já não pode mais ser. (Como Benjamin afirmava, os fósseis são sempre atuais, pois o inventário do velho faz emergir o gesto presente: as imagens que se levantam não devem tanto explicar o passado quanto descrever precisamente o lugar em que dele tomamos posse.) Nessa terra profunda, cheia de caminhos e larguras, repleta de extratos, a fotografia sobrevive como estilhaço, caco de uma história descontínua, fóssil que não contrai uma única fotografia, mas, diferente, cristaliza uma ideia de fotografia que servirá como parâmetro para que sejam vislumbradas as dimensões das alterações e os deslocamentos contemporâneos.
Persiste, por exemplo, quando se torna, desde a virada pictórica dos anos 90, uma peça fundamental para a reflexão e também para ação artística da atualidade. Persiste quando é proclamada aos quatro ventos pelo mundo, proliferando imagens que nada mais têm tecnicamente de ‘fotográficas’; persiste como um fantasma: viva e morta, simultaneamente.
Assim, identificar linhas de fotografia nessa grande constelação de imagens contemporâneas requer, a meu ver, reconhecer a sobrevivência de estados fotográficos, subjacentes ao declínio de sua experiência nos moldes modernos.
Nesse sentido, entrever as distâncias no território contemporâneo de imagens, delimitando as fronteiras que serão transgredidas, significa pensar as imagens não como meros produtos de aparelhos, dos quais o ‘fotográfico’ já nem existe mais. Diferente, requer pensar a fotografia como uma experiência história, que, ainda hoje, emerge quando, de súbito (como fantasma) se institui uma certa configuração temporal.
É claro que, em seu percurso, a fotografia não foi coisa única. No entanto, pensar o descontínuo – o fato de que, em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo – supõe, necessariamente, que, durante algum tempo, ele esteja relacionado a certos sistemas e encadeamentos; que, em algum período, haja um movimento capaz de atribuir certa configuração, constituição, emergência que obedece ao mesmo tempo a certa coerência e à entrada em cena de elementos estranhos, ou seja, a seu próprio deslocamento.
Se pensarmos a fotografia a partir de sua genealogia, de seu ‘vir a ser’, é possível identificar um tipo de experiência e de imaginário que, em transmutações permanentes, acabou configurando uma tensão eminentemente temporal. A experiência fotográfica moderna contraiu, de modo singular, o mortal e o eterno, o descontínuo e o contínuo, o heterogêneo e o homogêneo, a urgência e a permanência, a espera e a interrupção. Se tomarmos como base não só aquilo que a fotografia absorveu de sua época (como efeito de sua constituição histórica), mas também o que ela produziu como experiência inédita, encontraremos certo modelo temporal que, entre outras coisas, liberta a duração do movimento e institui o fragmento e a interrupção como condição necessária para a duração.
De todo modo, para instaurar as distâncias indispensáveis ao trânsito entre as imagens contemporâneas, é necessário também supor que haja uma história anacrônica das imagens, fugitiva da perspectiva do progresso, desertora da terrível perspectiva evolucionista, cujo ímpeto declararia a superioridade total das imagens provenientes das novas tecnologias imagéticas. É possível, então, perceber estados fotográficos como uma configuração sempre provisória, capaz de apoderar-se do cinema, da pintura, dos artistas, de nosso pensamento e da história toda vez que, em termos contraídos, haja, por exemplo, a experiência de um tempo vertiginoso, desligado do movimento.
* Originalmente, parte deste texto orientou minha fala no I Colóquio de Fotografia na Universidade de Brasília, Fotografia Contemporânea: Fronteiras e Transgressões, organizado por Susana Dobal e Osmar Gonçalves, em junho de 2013.
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