A fotografia, ainda hoje, tem um poder de atração inexplicável. Nem sempre sabemos racionalizar aquilo que nos leva a destacar uma boa imagem entre milhares que vemos semanalmente. Na verdade, pretendo aqui refletir sobre uma fotografia que recentemente circulou pela mídia internacional mostrando a equipe de segurança norte-americana, capitaneada pelo presidente Barack Obama e seu vice, Joe Biden, que acompanhava a operação dos Seals, no Paquistão, que culminou com a morte de Bin Laden. De autoria de Pete Souza, chefe oficial de fotografia da Casa Branca, e distribuída pelo The New York Times, a imagem registra provavelmente o momento exato em que os soldados americanos invadiam a casa e matava o inimigo.
O que chama minha atenção é que nada vemos, mas estamos diante de um fato consumado. Os personagens da fotografia “armada” estão atentos à cena que talvez jamais veremos e, de algum modo, isso me perturba. Além disso, no site da Casa Branca, na legenda dessa fotografia há, paradoxalmente, uma ressalva: “um documento secreto que pode ser visto nesta fotografia foi manipulado”. Ironias a parte, o que realmente eu vejo me inquieta. Não pelo que efetivamente vejo, mas por aquilo que não vejo.
Imagens assim parecem ser constituídas de um código específico, de alguma coisa que se destaca, mas que nem sempre é visível. Por que há fotografias que nos chocam pela ausência do referente que concretiza um fato de efeito global? Que poder tem essa imagem que não vemos mas que, de algum modo, sabemos que pulsa no interior desta fotografia? O que há exatamente naquilo que não vemos numa fotografia, mas que nos deixa, assim como os retratados, estarrecidos? São questões como estas que me fazem pensar sobre certas evidências da imagem fotográfica.
Claro que nem toda fotografia traz essa possibilidade. Mas me interessa refletir sobre como representar um fato através de uma construção que evidencia o contexto do visível, mas ao operar na ausência de uma imagem, desencadeia no leitor uma operação da mais pura imaginação. Um espaço de ausência na imagem visível, mas suficientemente provocativo, capaz de desencadear uma sensação que perturba demasiadamente o entendimento quase sempre direto da fotografia documental. Uma forma surpreendente de produzir fotografia que, em última instância, deve refletir o mundo visível e, nesse caso, reflete algo cujo significado se concretiza nos interstícios da imagem.
É impressionante constatar que, quase sempre, não é uma fotografia que opera na espetacularização do acontecimento em si, mas concentra nosso olhar e nossa imaginação justamente naquilo que não vemos. É preciso “criar” uma imagem dentro dessas fotografias, aparentemente performáticas, que traga algo de irrefutável para nos convencer de que vemos algo realmente surpreendente. Encontramos nessas fotografias estranhos personagens olhando para acontecimentos que escapam à percepção imediata. Uma fotografia construída e quase teatralizada para nos convencer de que o invisível é demasiado importante. Uma fotografia que parece espontânea, mas que abre um campo de possibilidades interpretativas para o espectador.
O que se manifesta nessas imagens e dá eloquência a elas é uma “presença” quase minimalista de outra imagem que atrai a atenção dos atores do documento iconográfico. Outro exemplo é o caso desta fotografia realizada no início dos anos 1980, de autoria de Vincent Carelli, fotógrafo e cineasta, na qual vemos um grupo de índios imóveis e catatônicos diante de uma tela de televisão. Aqui, entendemos a imagem como o registro de um choque entre culturas. Mas o que estaria exibindo esta tela que não vemos? Seria uma imagem qualquer, que assombra os retratados mais pelo aparato tecnológico do que pelo seu eventual conteúdo?
Outra fotografia que me veio à memória foi a de José Medeiros, repórter fotográfico da revista O Cruzeiro. Por ocasião da Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil, fomos derrotados no jogo final pelo time do Uruguai. Medeiros construiu o drama da derrota através de fragmentos visuais e pontuou seu ensaio com uma imagem emblemática dos fotógrafos que apontam suas câmeras para uma mesma direção. No que consistiria esse olhar coletivo que provoca uma enorme inquietude para o espectador que participa da experiência, mas nada vê?
A fotografia, que se tornou um paradigma da paisagem cultural contemporânea, tem o poder de transformar o cotidiano em coisas extraordinárias. Os exemplos que encontrei para comentar nesta primeira reflexão sobre o que não vemos numa fotografia foram produzidos em épocas diferentes, mas são conceitualmente muito parecidos. Claro, apesar de sua ilusória objetividade factual, seus conteúdos se diferenciam, porque a carga visual dramática de cada uma delas é distinta. A primeira é dramática porque pressupõe o exato momento do assassinato de Bin Laden. A segunda é dramática porque evidencia um choque cultural, onde o aparato tecnológico se sobrepõe para desestabilizar a identidade do outro. E finalmente a terceira, de José Medeiros, que narra o drama da derrota do time brasileiro. Fugindo da cena principal, ele flagra os fotógrafos apontando suas câmeras para o que não vemos, sugerindo e mistificando algum acontecimento.
Em todas as fotografias há uma concentração imperativa dos olhares que se fixam numa área que nós, espectadores, somos induzidos a imaginar, um jogo inteligente instituído pelo fotógrafo entre o espetáculo invisível e o espectador. Cabe ao fotógrafo estimular nossa imaginação, e as imagens aqui comentadas mostram que a representação não está apenas no espetáculo não visto, mas principalmente na intencionalidade do olhar do criador, que realça significações para instigar nossa inteligência.
Esta questão é recorrente na história das artes visuais. Diego Velázquez, em 1656, em sua clássica tela Las Meninas, potencializa o olhar do espectador e cria a expectativa de olhares indagadores das personagens sobre alguma coisa que não vemos. No livro As palavras e as coisas, de Michel Foucault, há um ensaio sobre esta obra, em que podemos observar algumas aproximações com estas fotografias aqui comentadas. Ao discutir as inúmeras possibilidades de olhar, esta pintura salienta que “O primeiro olhar lançado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse espetáculo de olhares.”
E conclui: “Talvez haja, neste quadro de Velázquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo – que é o mesmo – foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.”
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