Nestas férias, li Diário de Luto, de Roland Barthes, editado recentemente em português, com tradução de Leyla Perrone-Moisés. É um conjunto de pequenas anotações iniciadas em outubro de 1977, um dia após o falecimento de sua mãe, e que se estendem até setembro de 1979, seis meses antes de sua própria morte. No meio disso, entre 15 de abril e 3 de junho de 1979, ele escreveu A câmara clara. Etienne Samain já havia observado que esse livro, que tem 48 capítulos, foi escrito em exatos 48 dias, possivelmente, também sob a forma de um diário. Conhecendo agora este novo livro, fica ainda mais evidente que A câmara clara é parte desse mesmo luto.
É legítimo que algumas pessoas se irritem ao descobrir, apenas na sua segunda metade de A Câmara Clara, que todo investimento do autor visa dar conta daquilo que sente diante de uma foto de sua mãe. Se esse livro já parece demasiadamente sentimental, a dor que Barthes assume na intimidade de seu Diário pode soar patológica. Sua primeira anotação é tão estranha quanto sintomática: “primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?” (talvez porque, como revela, ele habitará o quarto em que ela agonizou). Mas cabe lembrar que essas são palavras privadas, ele diz no próprio diário que seu sofrimento não chega a ser percebido pela maioria das pessoas, porque ele se recusa a teatralizá-lo.
A Câmara Clara é talvez o desdobramento público e cultural desse mesmo sentimento, que Barthes, no entanto, não esconde: “o afeto era o que eu não queria reduzir, sendo irredutível, exatamente por isso, aquilo que eu queria, devia reduzir a Foto”, diz ele nesse livro. Por isso mesmo, é absurdo confundir seu embate com a busca de uma “essência semiológica” da fotografia, mesmo que às vezes ele pareça falar de qualquer fotografia. Quem tentar percorrer A câmara clara com essa chave só poderá achar suas conclusões enviesadas. Seria desonesto ignorar o que diz logo no início: “resolvi tomar como ponto de partida de minha busca apenas algumas fotos, aquelas que eu estava certo de que existiam para mim”. Não há ali um intelectual pensando a cultura fotográfica mas, como ele diz, um “selvagem”. Sua questão é: “o que meu corpo sabe da fotografia?”. Uma escrita visceral semelhante à do Diário de Luto: “escrita na qual eu punha minha própria respiração”.
Quando descobrimos o quanto Barthes está imerso nesse luto, entendemos que, em A Câmara Clara, ele apenas dissimula um interesse cultural. Ele finge em certos momentos que algumas fotografias existem para ele quando, na verdade, existe apenas uma: a foto de sua mãe, que ele jamais chega a mostrar, porque seu sentido não é em nada compartilhável. Esse é um fato que ele acaba por admitir na segunda parte do livro: “decidi então ‘tirar’ toda a Fotografia (sua ‘natureza’) da única foto que com segurança existiu para mim”.
O que Barthes diz só faz sentido para fotografias que mobilizam um “amor extremo”, como diz textualmente. E se isso se confunde com uma teoria é porque as fotografias tocam nossos afetos com frequência. É uma teoria ontológica sobre uma condição muito específica que essa imagem, talvez como nenhuma outra, pode assumir.
No Diário de Luto, Barthes faz poucas referências à sua rotina de trabalho, mas fala da necessidade de escrever esse livro dedicado à fotografia de sua mãe. Comentando sua passagem pela Igreja de Saint-Sulpice, ele diz: “Sento-me por um segundo; espécie de oração instintiva: que eu consiga realizar o livro Foto-Mam.” (09/06/78). “Mam.” é, como se pode intuir, a abreviação que ele quase sempre usa para se referir à mãe. Uma nota da tradutora confirma que esse livro viria a ser A Câmara Clara.
Seguem-se no Diário de Luto outras referências à fotografia da mãe no Jardim de Inverno:
13/06/78: “Hoje cedo, com grande dificuldade, retomando as fotos, fiquei emocionado com uma de mam. quando menina, doce, discreta ao lado de Philippe Binger (Jardim de inverno de Chennevières, 1898). Choro. Nem mesmo o desejo de se suicidar.”
15/06/78: “Estranho: sofri muito e, no entanto – através do episódio das Fotos -, sensação de que o verdadeiro luto começa (também porque caiu o écran das falsas tarefas)”
24/07/78: “(…) Foto do Jardin d’Hiver: procuro desesperadamente dizer o sentido evidente. (Fotografia: impossibilidade de dizer o que é evidente. Nascimento da literatura). “Inocência”: que nunca fará o mal”.
Alguns meses antes de começar a escrita de A Câmara Clara, suas hipóteses já são claramente sentidas, mas ainda resistam à escrita:
20/01/79: “Foto de mam. quando menina, ao longe – diante de mim, sobre a mesa. Bastava-me olhá-la, captar o tal de seu ser (que me debato por escrever) para ser reinvestido por, imerso em, invadido, inundado por sua bondade”.
É necessário reconhecer a luta que Barthes trava com a escrita e com o limite das palavras. A fotografia capta o “tal” de seu ser, mas o que é o “tal”? Muita coisa e quase nada. Quando nos referimos a “tal coisa”, falamos de uma coisa específica, singular, mas ao mesmo tempo não falamos nada dessa coisa. Assim é aquilo que a foto parece lhe dizer.
Barthes fala da mãe “ao longe – diante de mim”. Esse é o paradoxo de que A Câmara Clara tenta dar conta. Paradoxo que se revela temporal, não tanto espacial. “Longe” porque o que a fotografia mostra está situado no passado: “ela já não existe, ela já não existe, para sempre e totalmente” (07/12/77); “diante de mim” porque, por meio da fotografia, é sentida como presente.
Enquanto escreve o Diário, Barthes relê “Em busca do tempo pedido”, de Proust. Proust encontrou num biscoito a chave de uma memória involuntária que faz repassar de modo muito vivo sensações de seu tempo de infância. Está explícito o reencontro que Barthes deseja com uma felicidade que ele só encontra no passado. Mas, se a fotografia é capaz de operar movimento semelhante, ela o faz também de modo involuntário, por uma qualidade que não se poder querer colocar ou buscar na imagem, algo que escapa à codificação. Em A Câmara Clara, o nome de Proust aparece algumas vezes, numa delas, quando Barthes fala pela primeira vez da foto de sua mãe, das quais “não esperava nada”.
O sentimento de presença daquilo que é passado o reconforta mas, ao mesmo tempo, o apavora. Como vemos no diário, a aparição da mãe num sonho faz a perda ser vivida novamente como possibilidade: “sofro com medo do que aconteceu”. Em A Câmara Clara, o reencontro com a mãe por meio da fotografia é vivido como ansiedade: “é ela! É exatamente ela! É enfim ela”), mas também como temor: “isso será e isso foi (…). Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer: estremeço…”.
O tempo é a essência dessas imagens que existem para Barthes. É também a essência do luto, algo vivido num movimento descontínuo e paradoxal, como contagem progressiva que mede um suposto afastamento, mas como contagem regressiva de uma reaproximação.
28/05/79: “A verdade do luto é muito simples: agora que mam., está morta, sou empurrado para a morte (dela, nada me separa, a não ser o tempo).
Em A Câmara Clara e mais explicitamente no Diário de Luto, Barthes fala da própria morte que, de fato, logo chegaria. O desejo de reencontrar a pessoa que mais lhe faltava, se traduz em nostalgia, como é óbvio, mas também em expectativa: o desenho de uma possibilidade de reencontro que não demoraria a acontecer. Esse tempo para o qual as fotografias apontam implica, portanto, um movimento mais complexo do que parece.
***
Para terminar, descobri por acaso que Barthes fez, nesse mesmo período, uma breve participação no filme As irmãs Brontë (Les Sœurs Brontë, 1979), dirigido por seu amigo de André Téchiné. Ele interpreta o escritor inglês William Thackeray, que acolhe silenciosamente a pesonagem principal, Charlotte Brontë (Marie France Pisier), em seu camarote.
Em 1991, Téchine dirigiu o filme Eu não beijo (J’embrasse pas), assumindo Barthes como inspiração para a construção do personagem Romain.
6 Respostas