Nascimentos fotográficos

[28.nov.2011]

Nebulosa em Andrômeda, James Keeler, 1899

Nos dois últimos comentários aqui no Icônica tratei de nascimentos fotográficos. O que seria necessário para nascerem fotografias? Um anjo, talvez um garçom ou, ainda, um desencontro. Dos garçons às imagens-cigarras, as origens fotográficas foram pensadas como constelações temporais, fagulhas dispersas vindas de direções temporais diferentes. Às vezes uma fotografia nasce pela força de futuro, outras vezes pela insistência do presente: existo, existo, existo – resisto. Há, no entanto, fotografias que surgem porque o que já não existe persiste como fantasma, do mesmo modo que a estrela que, separada pelos milhões de anos luz – só encontra sua imagem quando já silenciada. A estrela sobrevive na imagem graças ao impulso de um passado que deseja viver no futuro e que pressiona em direção a ele. Ela, no entanto, só pode ser vista (e existir) por um olhar que, no futuro, se volta em direção ao passado. A imagem estável da estrela é, na realidade, errância permanente; luz imanente de objetos inexistentes, estrelas mortas cuja luminância é mais viva do que nunca e cuja visibilidade só é possível quando os impulsos temporais (do passado, do presente e do futuro) se tocam e se tornam indiscerníveis, deixando de se organizar por cronologia para se corresponder em todas as direções.

Nebulosa em Cygnus, c.1900.

A constelação de origens fotográficas está fundada sobre vetores de idades diferentes, que, embora aparentemente simultâneos e estáveis, provêm de tempos diversos. Ela parece nascer da aderência ao presente: as fotografias estão lá nítidas como as estrelas, vivas diante de nós. Mas a origem de uma constelação estelar não é concomitante ao presente: seus elementos constitutivos são heterogêneos e vivem tempos desencontrados. Aparentemente estáticos, são, na realidade, impulsos temporais indiscerníveis, continuamente presentes e continuamente moventes. Perceber os nascimentos fotográficos como constelações é afirmar a suspensão que a fotografia opera como inscrição de uma tendência à mutabilidade, de um passado movente presente. Do futuro para o passado transita a imagem, do presente para o passado se volta o olhar: impulsos temporais que fazem da fotografia esse trânsito tal qual a imagem imóvel da estrela. Trata-se da instabilidade que assegura à fotografia ter-se tornado, durante seu percurso, uma imagem temporal por excelência. Detida, como pensou Pedro Miguel Frade, confinada e transbordante, a imagem fotográfica constituiu-se como uma duração sustada e vital, atual e virtual.

O desejo de pensar nascimentos fotográficos pode fazer lembrar aquele desejo ontológico de Barthes: ele desejava saber o que a fotografia era em si, a fotografia contra o cinema, o irredutível fotográfico. A genialidade de Barthes percebe, no entanto, a impossibilidade de tratar A Fotografia. Era preciso tratar de fotografias, no plural. Se as teorias não davam conta de pensar o espanto de Barthes diante da Foto (estavam perto ou longe demais dela), sua busca tomava como ponto de partida apenas algumas fotos, aquelas cuja existência para ele lhe era certa. Nada a ver com um corpus, apenas com alguns corpos…. E as fotografias que existiam para ele, eram aquelas de que ele gostava. As que provocam júbilos: bens eróticos pontiagudos. “EIS-ME AQUI como MEDIDA do saber fotográfico”, dizia Barthes.  E ele, a partir das fotos, perseguia e inventava uma ciência do sujeito, cujo nome pouco importava, desde que alcançasse generalidade que nem o reduzisse nem o esmagasse.

A operação realizada por Barthes – que o faz encontrar a imagem “louca com tintura de real” – não é, entretanto, exatamente a mesma que faz pensar em nascimentos fotográficos. Se a ontologia fixa o ser fotográfico, pensar através de constelações temporais é supor consequentemente um processo de mudança permanente em que se interpenetram e se entrelaçam aspectos diversos ao longo de uma constituição eminentemente temporal. Investigar o que seria necessário para nascerem fotografias exige dois movimentos complementares. Em primeiro lugar, supor uma quase estabilidade a partir de “ideia de fotografia”. Algo que lhe possibilite existir como campo do pensamento, objeto de estudo eminentemente temporal. Não se trata nem de supor uma gênese automática, nem uma ontologia, tampouco uma instabilidade geral que inviabilize o pensamento. Trata-se antes de pensar a fotografia em sua positividade.

Nessa perspectiva, talvez seja necessário desviar das teorias contemporâneas segundo as quais o fotográfico não apresentaria qualquer estabilidade; não poderia haver nenhuma antropologia mínima na experiência fotográfica, tampouco nenhuma unidade histórica. Desde a década de 1980, críticos e historiadores da arte rejeitam as análises da singularidade fotográfica, defendendo que relevante seria pensar suas interseções com outras mídias, seu hibridismo e relações expandidas. Como afirmou Phillipe Dubois, não interessaria mais definir o que é a fotografia, “pois já se falou sobre isso nos anos 80 e porque esta não é mais uma questão que se coloque em área nenhuma, nem no cinema, nem na fotografia”. Também John Tagg, historiador da arte, defendeu a ideia de que as fotografias seriam tão diferentes entre si, que dificilmente nelas poderíamos encontrar marca comum: “não existe isto de a fotografia como tal, uma mídia comum. Existem diferentes áreas de produção, diferentes práticas institucionalizadas, diferentes discursos (…) sua história não tem unidade”. Em seu entendimento, “a fotografia carece de identidade. Sua natureza como prática depende de a instituição e dos agentes que a definem e a utilizam (…) O que devemos estudar é o campo, não a fotografia como tal”. Trata-se de discurso cada vez mais recorrente acerca da fotografia que a supõe incapaz de produzir por si qualquer coisa, como se fosse esponja ou metal condutor, que só transmitisse atitudes anteriores a ela.

Pensar uma quase estabilidade não significa, entretanto, pensar uma história lisa; ao contrário, exige que se perceba, sobretudo, a complexa, vertiginosa e, às vezes, paradoxal relação que a fotografia estabeleceu com o tempo, no tempo. Investigar o que seria necessário para nascerem fotografias exige uma segunda operação: introduzir nessa “quase estabilidade” a errância – a duração como fundamento da experiência fotográfica; o devir como parte de sua constituição. Exige identificar uma singularidade que a atravessa, mas que também se transforma. O que a fotografia veio a ser, o que fez as fotografias nascerem são fagulhas temporais que se modificam com o próprio tempo. Os anjos do tempo, as brisas fotográficas sopradas pelos garçons, as imagens-cigarras são imagens de uma certa ideia de fotografia, uma “quase estabilidade” que serve de parâmetro para que sejam vislumbradas as dimensões das alterações e os deslocamentos contemporâneos.

Por isso a foto do casal tirada pelo garçom: a precariedade daquela foto imaginária fazia uma certa ideia de fotografia existir para mim do mesmo modo que Barthes fazia uma ciência do sujeito partir da fotografia do jardim de inverno (em que reencontrava sua verdadeira mãe na imagem de quando ela tinha apenas oito anos). Essa fotografia teria nascido duas vezes: primeiro, no instante do click, quando o sopro do anjo do tempo ventou a primeira fotografia; depois, quando a precariedade da imagem possibilitou o reencontro com o que nela já não mais existia. Nesse reencontro a imagem se fez diferente – mesma e renovada, brilhando como as estrelas que já não existem mais quando, de fato, elas existem para nós. Duas fotografias numa fotografia. Dois nascimentos e, ainda, a potência de infinitos nascimentos futuros que não são, entretanto, meramente produzidos pelo presente, pois que emergem e vêm à luz porque, de algum modo, infiltraram-se em sua fundação. Essa certa ideia de fotografia desenha uma estabilidade movente: me faz pensar sobre o que a fotografia foi e o que ela será.

Pensar o que seria necessário para haver fotografia parece, na realidade, relacionar-se ao enigma da visibilidade fotográfica. Fotografias nascem quando se tornam legíveis. Por isso pode nascer infinitas vezes a mesma e diferente fotografia. E, pensando com Walter Benjamin,  atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico de movimento de determinada época. Todo presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas. A legibilidade dessa temporalidade se dá no entrelaçamento de uma experiência histórica da fotografia e uma experiência fotográfica do tempo. Cada fotografia parece dilatar, comprimir, explicitar, ocultar, de maneira singular e única, aquilo que só se faz legível historicamente. É somente na transfotografia, no atravessamento das imagens, que a temporalidade fotográfica parece dar-se a revelar. Será, no entanto, que tais possibilidade continuam legíveis para nós? O que faz a fotografia existir hoje seria o mesmo que sustentou sua existência moderna – quando se constituiu como devir de tensões temporais?

Tags: , ,

Fotógrafa, pesquisadora, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

9 Respostas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Reload Image

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.