As imagens de Patricia Gouvêa me fizeram voltar no tempo, àquela época da emergência da fotografia, quando ela se apresenta como um dos mais insignificantes e interessantes dispositivos temporais da modernidade.
Foi Victor Hugo quem me levou nesse deslocamento de tempo. Abandonava o presente para tentar compartilhar o espanto das viagens de trem do escritor francês. Trilhando sua carta, redigida em 22 de agosto de 1837 (dois anos antes de a fotografia ser apresentada na academia francesa), podia, então, ver através da janela do trem
que as flores à margem da estrada não são flores, mas manchas, ou melhor riscos, vermelhos ou brancos; já não existem pontos, tudo se torna riscos; os campos de trigo são grandes cabeleiras amarelas; campos de alfafa, longas tranças verdes; as cidades, os campanários e as árvores encenam uma louca dança misturando-se no horizonte; de quando em quando, uma sombra, uma forma, um espectro aparece e desaparece como um relâmpago por trás da janela: é o chefe da estação.
Victor Hugo me faz sentir uma visão profundamente debilitada pela velocidade, algo que provavelmente não estava relacionado a nenhuma deficiência fisiológica. Mais do que isso, entre 1770 e 1830, as possibilidades inéditas do sistema ferroviário relacionavam-se ao problema da experiência do sujeito moderno que, nesse momento, estava em franca transformação. O tempo das viagens entre as mais importantes cidades europeias caíra pela metade. As novas relações entre espaço e tempo produziam então uma nova geografia, agora baseada na condição da velocidade. O que é decisivo, nesse momento, não é exatamente a medida objetiva da distância, mas a relação potencial de tal distância. As novas tecnologias de transporte tinham a velocidade como promessa inerente, e isso parecia causar, a princípio, enorme sensação de perturbação e estresse. A velocidade é vivida, nas primeiras décadas do século XIX, como desorientação, invisibilidade, impossibilidade de distinguir objetos através da janela, como constatam outros depoimentos da época (1838): “é impossível reconhecer uma pessoa de pé, à beira da estrada, passando por ela na velocidade atual dos trens.” Ou ainda: “árvores, choupanas, etc.: tão logo alguém se volta para olhá-las, elas há muito se foram”, dizia Jacob Burkhardt, em 1840. Muito interessante o desconforto que a velocidade causa aos corpos e subjetividades ainda não calibrados da segunda metade do século XIX. Como criticava o editorial do jornal médico The Lancet, em 1867:
a rapidez e a variedade dessas visões através do trem causariam necessariamente fadiga tanto ao olho quanto ao cérebro: “A distância constantemente variável a que os objetos são colocados envolve um trabalho de adaptação incessante do aparelho que os focaliza sobre a retina (…) o excesso de atividade funcional sempre implica a destruição de material e a mudança orgânica da substância.
Qual poderia ser o efeito das viagens ferroviárias? É como se a paisagem de velocidade dos trens da primeira metade do século XIX tivesse impregnado toda a percepção, dentro ou fora da viagem. Tudo indica que, ao ocorrer tal intensificação dos estímulos, as noções de espaço e de tempo pareciam estar sendo profundamente alteradas. De acordo com o escritor alemão Heine Lutezia, em carta redigida numa viagem de Paris a Orleans, em 1843, “o que muda agora precisa ocorrer em nosso modo de olhar as coisas, em nossa noção! Mesmo os conceitos elementares de tempo e espaço começaram a vacilar. As ferrovias matam o espaço, restando-nos somente o tempo…” De fato, nem o tempo poderia ser mantido intacto, pois, se havia algum aniquilamento do espaço, esse não poderia ser realizado senão pela velocidade.
Tratava-se da mesma profecia de velocidade que fundamentou os discursos sobre o advento da fotografia instantânea. Como as velocidades propostas pelos novos trens, a fotografia prometia mais do que uma capacidade atual de rapidez: ela sugeria uma relação potencial de velocidade e, simultaneamente, de durabilidade. Promessa que, mesmo não cumprida imediatamente, já conformava, em potência, uma nova percepção. O que a fotografia estaria habilitada a fazer quando inevitavelmente progredisse?
Congelar. Fixar. Tornar nítida a imagem do tempo. Tornar imóvel as vistas modernas.
Parar o trem. Conter o progresso do esquecimento. Assegurar o domínio do indomável tempo moderno. Tranquilizar a percepção de um corpo que só poderia perceber a intranquilidade das velocidades inéditas que sobrecarregam as vidas do século XIX.
Assim, todo o desenvolvimento fotográfico é sustentado por um desejo de instantaneidade que irá solucionar o desconforto que novos procedimentos, como as viagens ferroviárias, produziam. Não por acaso a fotografia instantânea ganhou legitimidade e a autoridade para enunciar o mundo, questionar o visível, impondo-se como paradigma da fotografia do século XX, até hoje.
Por que então, borrar hoje as imagens? Por que a estratégia, simples tecnicamente, de evocar os fantasmas do advento da fotografia, os borrões causados pelas longas exposições? Por que abdicar, mesmo que momentaneamente, daquilo que foi não apenas um projeto “bem-sucedido”, mas também um modo naturalizado na história da fotografia e apreendido tão facilmente pelo olhar contemporâneo?
Será que as “imagens posteriores” de Patricia Gouvêa retomam o tempo em que a fotografia vivia não ao sabor do instante, mas longamente no interior dele?
Arrisco a dizer que não se trata de evocar simplesmente a história da fotografia. Mas ao fazê-lo, sublinhar aquilo que difere. Sublinhar o tempo que habitamos hoje. Não nos espantamos mais com a velocidade; a vida hiperacelaerada do nosso presente contínuo é a própria condição de possibilidade do que somos hoje, do que pensamos, do que desejamos, do que memorizamos e, principalmente, do que esquecemos. É com fruição que vemos as imagens de Patricia. Prazer estético. As paisagens arrastadas das viagens de Patricia nos fazem lembrar não apenas do que modernamente fomos um dia feitos, mas, principalmente do que contemporaneamente estamos sendo feitos.
Desconfio também que junto delas suspire a voz de Bergson, que dizia, ainda no final do século XIX, que deveríamos nos habituar a pensar a duração e aí… imediatamente o que estava entorpecido poderia distender-se:
Diante do espetáculo dessa mobilidade universal, alguns de nós serão tomados de vertigem. Estão acostumados à terra firme; não conseguem se acostumar (…) Precisam de pontos fixos aos quais amarrar as ideias e a existência. Acreditam que se tudo passa; nada existe; e que, se a realidade é mobilidade, ela já não é no momento em que a pensamos (…) – Podem ficar tranquilos! A mudança, se consentirem em olhar para ela diretamente, sem véu interposto, logo lhes aparecerá como o que pode haver de mais substancial e duradouro no mundo. Sua solidez é infinitamente superior à de uma fixidez que não passa de um arranjo efêmero entre mobilidades (…) Para nós nunca há instantâneo (Bergson, em Memória e Vida).
* Texto elaborado para lançamento do livro Imagens Posteriores de Patricia Gouvêa, na livraria Cultura de Brasília, 15 de abril de 2013.
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