O Icônica é um lugar que fomenta o meu discurso. De certa forma, uma foto que carrego no bolso e me ajuda a achar sentidos nas coisas que procuro – e me são caros os achados. Aqui, um céu torna-se possível: os espaços vazios da minha pesquisa se veem provocados quando não preenchidos pelo que esta constelação ilumina.
Pensando em um primeiro post, escrevi um pouco sobre um estado recente em que tenho vivido. Sinto-me assim em uma espécie de fotografia, com a vida provisoriamente suspensa e dispersa em uma superfície que imprime projetos de certa forma interrompidos.
Tirei os pés do chão de um passado e ainda me encontro em meio a um salto no qual não enxergo nada além do pau da venta. Mas como é com a fotografia, vale a regra de que tal estado existe para suscitar coisas com mais força, pois esta suspensão é sentida pela abertura que provoca.
A fotografia afirma-se por um ato que suspende a vida e nos leva para uma esfera indicial, como alma itinerante que vai se apossar das coisas, liberar os fantasmas e revelar histórias retidas. Toma posse dos segredos que passariam em vão. Apoio-me nesta linguagem, em sua capacidade de nos provocar a prospectar os solos trilhados e achar neles as inscrições de um tempo ainda não vivido plenamente. Latente pela temporalidade radical da interrupção. Um estado sublime que me desprende por algo que começa a encontrar rédeas de razão.
O sublime na formulação oferecida por Kant é o sentimento frente a uma imensidão que a razão não pode conter. Tem arestas, ventania. Quando estamos presentes em uma tempestade na qual o céu e o mar parecem discordar entre si e o que sobra é o impreciso, aquele volume imenso de uma natureza em fúria que nos violenta o espírito, isto é o sublime.
A razão precisa de tempo para compreender esse estado de um mundo a se perder na água, nos ventos e nas nuvens. Há um espanto no sublime. É a beira de um abismo, o frio que o corpo sente por suspensão, por saber em um lampejo o quanto é insuportavelmente pequeno diante do que se percebe. “Uma altura elevada é tão sublime quanto uma profunda depressão, só que a esta acompanha uma sensação de assombro, àquela de admiração;[…] Uma longa duração é sublime. Caso pertença a um tempo passado, é nobre; antevista num futuro imprevisível, possuirá em si qualquer coisa de terrível.” (Kant)
A fotografia em que me apoio é mais próxima ao que desconheço. Se penso na distância entre o pensamento, abstrato, e o vivido entorno, presente, percebo que a fotografia tende mais às reações vertiginosas da mente. Mesmo sensível ao real, ela atua fundamentalmente ao lado das abstrações. Superfície tecnicamente criada por um forte espírito moderno, uma linguagem que tem curiosidade pelos fatos, porém, não consegue mantê-los íntegros. Nesta relação entre distância e proximidade, faz surgir por si mesma, de suas tramas subversivas, discursos inéditos à plena luz do motivo fotografado.
A fotografia reorganiza as percepções e rearranja simbolicamente aquilo que parecia posto. Fotografei um céu e pude vê-lo aproximado, diminuído, delimitadas as suas fronteiras. Ele coube ali na fotografia chegada ao junto, que lhe trouxe para perto, ao toque.
Ao contrário, fotografei um chão próximo e material. E já este se tornou, na representação de tal fotografia, complexo, erodido pelas histórias desenhadas nos encaixes de seus estratos. Ganhou uma enorme dimensão este chão que parecia próximo, sob os meus pés. Virou o mapa de todas as lutas, dúvidas, conquistas, das versões que embalam e alicerçam um piso futuro. O céu, seu oposto verso, nas fotos emparelhadas à comparação, agia diferente e se tornou menor, finito, possível. O chão, por fim, o destino inevitável das existências que caminham aos passos do tempo à conclusão de qualquer vida, não privou-se de gerar um desejo à imaginação de que poderia ser infinito este trajeto.
A fotografia, com sua natureza sublime, está ligada à impossibilidade de compreender racionalmente uma totalidade. Há um descompasso entre a limitação do conceito, do que inicialmente propõe, e a infinitude da representação sensível quando é vista. O sublime faz o corpo flutuar, desencarna o calor que nos estrutura e nos mistura às coisas do mundo. Nos faz fluir. Como disse a pesquisadora (e amiga) Mariana Lacerda, “sinto um rio passar entre nós, agora.” A fotografia é uma linguagem que explode e inverte as limitações do pensamento. Esta técnica moderna possui paixão, alma, e é repleta das sínteses, dos espaços, das ambiguidades que nos provocam a perceber sentimentos sublimes.
Fotografia que faz o chão fluir como um rio, uma imensidão.
Sempre tratei os professores Cláudia Linhares Sanz, Rubens Fernandes Junior, Maurício Lissovsky e Ronaldo Entler como fotógrafos. De um tipo que subvertem os limites próprios das definições convencionais e se colocam à frente, na construção de discursos, na criação dos conceitos que sopram desta linguagem. Fotógrafos que percebem: com a fotografia não se pode dizer tudo, mas com ela haverá, eternamente, a possibilidade de tudo ser dito novamente.
Em pleno salto, no céu que estou agora, já estavam eles, constelação criada para iluminar a linguagem. Formou-se no Icônica, já faz um tempo, um time que transmite percepções eruditas que jamais se esquivaram da poética, das centelhas imagéticas que habitam os textos. O Icônica se cria na habilidade de reunir partes em prol de um fim que não define-se pela utilidade convencional, mas, antes de tudo, pela experiência estética. Me dou as boas vindas!
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