Colecionador de Olhares Desaparecidos [parte 2]

[10.jun.2012]

Há cerca de dois anos, aproximadamente, tive acesso a um lote de fotografias de índios brasileiros. Apesar de interessante do ponto de vista antropológico e documental, resolvi não adquiri-lo dada a sua complexidade temática e técnica. Explico: tratava-se de um conjunto de imagens (positivos e negativos) de temática indígena que trazia habitantes da região central do país, e que ainda deveria ser pesquisado, higienizado, devidamente copiado, catalogado e problematizado. Além disso, distanciava-se do foco que tento manter no conjunto que venho colecionando nestes mais de 30 anos ininterruptos de andanças em busca de imagens que foram descartadas pela sociedade, e que estão a minha espera nas feiras bric-a-brac e nos sebos de todo o país.

Decididamente eu não tinha (e ainda não tenho) competência para avaliar e resignificar aquelas fotografias que formavam um pequeno inventário que atende a vários interesses e “pediam” um repertório mais específico de análise. Pensei imediatamente nos amigos pesquisadores que têm maior intimidade com a antropologia visual – Etienne Samain, Fernando de Tacca, Milton Guran, Luiz Eduardo Achutti, entre outros. Mas era um domingo, e ainda muito cedo para incomodar alguém.

Índios Karajás marcados para rituais que celebram os espíritos que só visitam a aldeia no verão

Curiosamente, há três semanas, o conjunto de imagens retornou à Feira do Bixiga. Desta vez com mais intensidade, pois meu fornecedor aguardou todo esse tempo para oferecer-me novamente. Como se trata de fotografias muito específicas, ele tem conhecimento de que são poucos os eventuais passeantes que podem ter algum interesse por este tipo de mercadoria. Sim, é assim que infelizmente é tratada parte da memória do nosso país. Desta vez, ele explicou-me com mais precisão a origem das fotografias e acabou me convencendo de que, comigo, elas estariam preservadas e até poderiam ser divulgadas. Uma enorme responsabilidade para quem pretende ser apenas um colecionador de olhares desaparecidos, como escrevi aqui em outra ocasião.

O professor Nicholas Mirzoeff da NYU, autor do livro An introduction to Visual Culture (Routledge, 2000), defende que o número de fotografias produzidas desde 1839 é de tamanha grandeza que é verdadeiramente impossível escrever uma historia completa da fotografia. Conclusão: nós, pesquisadores, estamos diante de uma missão impossível e, ao mesmo tempo, devemos aceitar os desafios e tentar dar visibilidade a esse imenso iceberg que é a iconografia moderna e contemporânea produzida no Brasil, a partir do advento da fotografia.

O conjunto adquirido é constituído de 125 negativos flexíveis no formato 6 X 9 cm e 6 X 4,5 cm, 6 negativos de vidro formato 9 X 12 cm e 105 cópias fotográficas de tamanhos diversos. A autoria das fotografias é com alguma certeza do sertanista Hermano Ribeiro da Silva, que atuou nos anos 1930. Fui informado que este material ficou sob a guarda de Raphael Ribeiro da Silva (irmão do sertanista) e de sua esposa Rosana Escobar Ribeiro da Silva, esta por sua vez filha de Francisco Escobar, o homem a quem se deve o fato de Euclides da Cunha ter escrito Os Sertões. Essas conexões surgiram a partir das informações que recebi do meu ilustrado fornecedor. Também encontrei dois livros de autoria do sertanista: Nos sertões do Araguaia. Narrativa da Expedição às Glebas Bárbaras…, da Editora J. Fagun, 1936; e Garimpos do Mato Grosso – Viagem ao Sul do Estado e ao lendário Rio das Garças, da Editora Saraiva, 1954, ambos com fotografias.

Conversei com André Toral, antropólogo e professor da Faap que viu as fotografias e avaliou algumas, particularmente, por suas qualidades etnográficas. Por exemplo, identificou o grupo indígena como Karajás, a pesca do Pirarucu com arpão e arco e flecha, as simulações de luta à beira do rio Araguaia, e sugeriu que as fotografias foram feitas no período do verão graças a visão de uma delas que documenta o interior da habitação com toda sua cultura material, entre outras preciosas informações. Falou também sobre a Bandeira Anhanguera, “grupo que perambulou por Goiás, Mato Grosso, Ilha do Bananal e região, composto de aventureiros paulistas e jornalistas sem escrúpulos, que atrapalhavam a atração dos índios Xavantes promovida pelo SPI – Serviço de Proteção aos Índios”. Posteriormente, o material dessa expedição foi depositado no Museu Paulista, que fez a doação ao Museu Plinio Ayrosa, que por sua vez repassou-o ao MAE – Museu de Antropologia e Etnografia, todos da Universidade de São Paulo. Toral também me recomendou a leitura do livro Viagem ao Araguaia, de 1863, de autoria de José Vieira Couto Magalhães. Ao analisar as imagens, constatou que várias delas são bastante conhecidas e que, provavelmente, este conjunto adquirido deve ser a “sobra” daquilo que foi encaminhado ao museu.

índios Karajás em simulações de luta

índios Karajás na pesca do Pirarucu com arpão e arco e flecha na Ilha do Bananal

aventureiros com Jaburu Moleque e aventureiros com onça pintada

Junto com as fotografias encontramos um documento datilografado, redigido pelo irmão do sertanista, Raphael Ribeiro da Silva. Este informa que seu irmão Hermano Ribeiro da Silva, em uma das suas expedições, teve a companhia de um jornalista da revista Times, Peter Fleming. Este, por sua vez, descreveu fantasiosamente sua experiência no livro Aventura Brasileira. Hermano, para contestar esta versão escreveu o livro acima citado, Nos Sertões do Araguaia …, refutando as ironias e maledicências de Fleming, apelando para o testemunho de um homem que era o melhor conhecedor dos sertões, o Marechal Rondon (1865-1958). Ao final do documento datilografado, somos informados que Hermano Ribeiro da Silva morreu nos sertões, na fronteira dentre Mato Grosso e Goiás, vítima de sucessivas febres.

Esse panorâmico retrospecto demonstra que o conjunto fotográfico tem alguma importância histórica e antropológica. Portanto, uma reflexão mais aprofundada poderá transformar esta pequena coleção de fotografias numa pluralidade de significados. Isso é a essência da imagem fotográfica: seja ela qual for, ela é sempre uma trama de silêncios e ruídos que, quando acionados, podem detonar lembranças, emergir e articular informações, despertar a imaginação. Fotografias são como camadas de memórias que provocam indagações e indignações.

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PS: o conjunto está a disposição para consultas e eventuais publicações

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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