Apropriações: modos de transitar pelo excesso

[08.set.2011]

O post anterior se encerrou com a seguinte questão: quais as formas de lidar com a nova escala de produção e circulação de fotografias? A “quantidade” de imagens disponível na era da fotografia digital e da internet parece dar uma nova “qualidade” ao problema, mas os sentimentos que temos diante disso não são propriamente novos, o deslumbramento e a desconfiança são coisas inerentes à qualquer mudança. Por exemplo, dizem que os pintores impressionistas se encantaram com o modo como o mundo se transformava quando visto de dentro de um trem, enquanto a ciência estudava os possíveis danos que essa velocidade vertiginosa de 30 km/h poderia causar à saúde. De modo análogo, quando Baudelaire falava da nova “loucura” que comovia “as multidões”, é muito provável que já estivesse também incomodado com a quantidade de imagens que a fotografia despejava sobre os olhares do século XIX (“O público moderno e a fotografia”, 1959). Mas, enfim, o problema parece adquirir um novo estatuto quando todas as pessoas acumulam em seus HDs um arsenal de imagens que parecem definitivamente condenadas à invisibilidade dos dados.

Sempre passando pela estratégia da apropriação, podemos intuir a existência de posturas diferentes que os artistas assumem diante do excesso de imagens, sejam elas novas ou velhas, digitais ou não.

Destruição

Muitos autores apontam hoje para a impossibilidade de uma imagem produzir sentido. No campo teórico, Jean Baudrillard é talvez o pensador que mais violentamente denunciou o modo como o real se apaga diante de sua hiperexposição aos sentidos: “se o Real está desaparecendo, não é por causa de sua ausência – ao contrário, é porque existe realidade demais. Este excesso de realidade provoca o fim da realidade, da mesma forma que o excesso de informação põe um fim na comunicação” (A ilusão vital, p. 72).

Joachim Shmid, Photogenetic Draft #8, 1991

Há algumas décadas, o trabalho do artista alemão Joachim Schmid incorpora com ironia um vocabulário ecológico para denunciar esse excesso, o desperdício gerado pela reprodução ao infinito de certos modelos, de estereótipos. Num primeiro momento, sugeriu a possibilidade de reciclagem das imagens já realizadas: “nenhuma nova fotografia até que as antigas tenham sido utilizadas”. Como repetimos as mesmas poses, não seria preciso produzir novamente as mesmas imagens, qualquer retrato estaria apto a representar qualquer pessoa. Para dar conta disso, Schmid fundou um tal “Instituto para reprocessamento de fotografia usadas” e, com o vasto material recebido, tem realizado vários de seus trabalhos. Causou algum desconforto com a série Photogenic Drafts, quando rasgou algumas dezenas de retratos para demonstrar através de montagens o modo como a fotografia constrói sempre um personagem genérico.

Joachim Schmid, Statics: women’s fashion catalogue, 1999

Em Statics, Schmid também destrói imagens – agora numa máquina fragmentadora de papéis – para evidenciar aquilo a que supostamente elas já haviam se reduzido: ruído, puro efeito visual. Resta para ele a constatação da inoperância das imagens como representação.

Quando Schmid nos convida a parar de fotografar, ou mesmo quando destrói as imagens de seu acervo, creio que não devemos entender sua atitude tão literalmente. Não é efetivamente um destino que apregoa para as imagens, é antes um ato performático que alegoriza seu ceticismo quanto à possibilidade de religar essas fotografias àquilo que se tentou registrar ou guardar como memória.

O gesto de deletar fotografias digitais certamente não soaria tão provocativo, pela imaterialidade desse registro. Seria portanto menos emblemático e menos performático, pois um único gesto – uma tecla apertada – poderia fazer desaparecer quantas imagens se desejasse. Na verdade, convivemos com o fato de que, eventualmente, esses dados serão perdidos por conta de vírus, descuidos, porque um pen drive deixará de funcionar, porque não teremos mais leitores para as antigas mídias, ou porque os novos programas deixarão de decodificar os arquivos antigos. Possivelmente, a questão se tornará mais concreta e visível – e potencialmente mais ritualizada e “estetizável” – quando começarmos a herdar os HDs dos nossos avós, para decidir se iremos preservar, deixar que se tornem espontaneamente ilegíveis ou deletar os dados que eles acumularam.

Abstração

Diante do excesso, alguns artistas concluem que só é possível tratar as imagens em sua própria existência massiva, sob a forma de grandes sínteses ou extensas paisagens de formas que se tornam idênticas. Na impossibilidade de olhar para cada uma delas, o que resta é destacar da repetição o modelo que as rege. Chamo aqui de abstração a ação de produzir um olhar generalista sobre as imagens reduzindo-as a seus seus “denominadores comuns”, como fazem os indexadores ou  as “tags”. Esse parece ser o modo mais recorrente de tratamento das imagens quando se constata sua hiperabundância.

Estratégia semelhante pode ser convocada não por descrença, mas como um método analítico: é o que fazem Gavin Adams, Solange Ferraz e Vânia Carneiro no vídeo “Poses do XIX”, quando buscam evidenciar uma estrutura comum aos  retratos feitos por Militão Augusto de Azevedo, definida por elementos formais como a pose e a disposição de objetos cenográficos.

Mas, com frequência, a ação de superexpor as imagens está marcada pela desconfiança de que elas tendem a se apagar e se esvaziar de sentido diante de sua proliferação. Encontramos vários exemplos que tomam essa direção.

Na série “Photo Opportunities”, Corinne Vionnet sobrepõe conjuntos de fotografias feitas em locais turísticos para mostrar que a síntese de olhares já está dada pelas próprias escolhas repetitivas dos fotógrafos.

Corinne Vionnet, Photo Opportunities, 2009.

Penelope Umbrico (que dará um workshop no Paraty em Foco deste ano) desdobra em grandes extensões as imagens semelhantes que encontra no Flickr, no e-Bay ou em outras redes de informação.

Penelope Umbrico, Suns, 2006 (trabalho em processo).

Essa questão também está presente em toda a trajetória de Joachim Schmid. Percorrendo o Flickr, ele realizou recentemente uma exaustiva curadoria que resultou na série de 96 livros chamados “Fotografias de outras pessoas”, a partir de temas banais como “azul”, “vermelho”, “comida de avião”, “rostos em buracos”, “lego”, “Mickey”, “Trópico de Capricórnio”, “quartos de hotel”, “porta de geladeira”, “pizza”, “sombras” e outros tantos.

Joachim Schmid, Other People Photographs, 2008-2011

Joachim Schmid, Other People Photographs, 2008-2011

Singularização

Parece cada vez mais remota a possibilidade de perceber numa imagem a singularidade do fato que lhe deu origem. De modo geral, já tem sido difícil fazer isso com nossas próprias fotografias. Mas, com uma estratégia lúdica, é possível encontrar experiências que percorrem as redes para destacar fragmentos de visualidade sobre os quais o olhar possa se deter.

Sendo o mais amplo acervo de paisagens urbanas do planeta, o Google Street View é emblemático da disponibilidade contemporânea de imagens. Lembra aquele “mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia pontualmente com ele”,  conforme falava Borges (Del rigor de la ciencia). O fotógrafo Michael Wolf percebeu a possibilidade de destacar dessa paisagem contínua fatos incidentais que podem ser convertidos em enquadramentos fotográficos. Na verdade, o que faz Wolf é reproduzir – de um modo às vezes paródico – a atitude do “fotógrafo de rua” que sai à caça de seus “momentos decisivos”, aqui registrados acidentalmente. Eventualmente, joga-se também com os elementos gráficos do aplicativo. Mas, essencialmente, o que Wolf faz é emular o olhar clássico do fotojornalismo e da fotografia documental, incluindo uma versão do “Beijo”, de Robert Doisneau. De todo modo, esse trabalho tem o mérito de demonstrar que é possível reencontrar “focos de intensidades” nesse olhar ubíquo, neutro e diluído representado pelas câmeras que se espalham pelo planeta.

Michael Wolf, Paris: Street View, 2009 / Street View:a series of unfortunate events, 2010.

Quando a história de cada imagem se perde, a ficcionalização é um artifício que permite restituir sua singularidade. A escritora e curadora Kate Armstrong criou em 2007, sob a forma de um aplicativo para o Facebook (hoje indisponível), uma graphic novel chamada Porque algumas bonecas são más. Por meio desse aplicativo, o usuário podia navegar por uma sequência randômica de páginas que associava fragmentos de uma narrativa a imagens coletadas do Flickr, a partir de correspondências verificadas com suas “tags”. O resultado era propositalmente caótico mas também lúdico e surpreendente.

Kate Armstrong, Why some dolls are bad, 2007

Sem a devida distância no tempo, ainda não encontramos trabalhos que investigam seriamente os modos de sobrevivência da memória nessa nova condição de circulação das imagens.Como disse no post anterior, acredito no potencial de testemunho de uma imagem digital. Mas vivemos hoje um hiato curioso: confiando no fato de que os registros estão mais disponíveis do que nunca, não sentimos grande necessidade de retornar a eles. Será preciso sentir que esses documentos estão em risco para que o olhar se vincule novamente a eles. De fato, a memória sempre requer a proximidade do esquecimento.

É o que vimos acontecer com os arquivos tradicionais. Quando recorrem à apropriação de imagens alheias, artistas como Christian Boltanski e Rosangela Rennó alternam entre a constatação do caráter inevitável do esquecimento e o desejo reencontrar os sujeitos dessa pretensa memória. Em Boltanski, é clara a passagem entre a atitude irônica de seus primeiros trabalhos (bastante afim à idéia de abstração) e outra mais melancólica que suas obras mais recentes assumem. Isso se torna particularmente evidente quando ele revisita a grande paisagem de fotos que criou em “Retratos dos alunos do C.E.S. de Lentillères” (1973) para destacar esses personagens em “As crianças de Dijon” (1985), um de seus tantos monumentos dedicados à memória desses sujeitos que se tornaram anônimos.

Christian Boltanski: Portraits des élèves du C.E.S. des Lentillères, 1973 / Les enfants de Dijon, 1985

Não conheço trabalhos que se voltam para os retratos publicados nas grandes redes de compartilhamento para reivindicar a possibilidade de sobrevivência de seus personagens como indivíduos. Por ora, a constatação irônica do quanto essas identidades se tornam abstratas parece ser o tom que prevalece entre os artistas que olham para essa massa de imagens. A questão surgirá também sob uma forma mais dramática quando essas fotografias se desprenderem definitivamente dos “perfis” que as acompanham, quando esses retratos se tornarem efetivamente anônimos, quando alguma dessas grandes redes de compartilhamento ficarem abandonadas como arquivos mortos ou cidades fantasmas, quando algum de seus backups for encontrado por acaso numa lata de lixo.

Para aqueles que não confundem a memória com os relatos hegemônicos, todas essas imagens têm alguma chance, todas elas são potencialmente históricas. Não daremos conta de muitas delas, mas talvez valha a pena corresponder ao olhar que elas lançarão sobre nós quando, por acaso, cruzarem nosso caminho. Provavelmente, não saberemos como desvendar o seu tempo, mas elas saberão o que dizer sobre o nosso.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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