A imagem vencedora da edição de 2011 do Word Press Photo, de Samuel Aranda, tem uma qualidade rara no fotojornalismo: mostra pouco, mas produz forte reverberação. Mesmo que mal lembremos que existe no mapa um país chamado Iêmen, reconhecemos ali o sofrimento dessas pessoas. A foto não explica a razão ou a extensão do problema, apenas mostra a dor como qualidade e intensidade. Ainda que a Primavera Árabe nos afete pouco, ou mesmo quando seus eventos já não renderem mais notícias, essa imagem poderá dizer alguma coisa sobre “a dor dos outros”, quem quer que sejam eles.
Manifestei aqui no blog minha desconfiança quanto à foto premiada em 2010: naquela ocasião, parecia estar em questão mais a gravidade do fato (uma jovem afegã que teve orelha e nariz decepados) do que a abordagem que fotografia fazia dele. A premiação de 2011 já foi suficientemente noticiada, mas toda imagem que reverbera exige tempo para que seus efeitos sejam minimamente compreendidos. Assim como fiz no ano passado, achei que valia a pena compartilhar essa leitura.
Duas desgraças podem recair sobre o fotojornalismo: 1) presas demais aos fatos, suas imagens não sobrevivem aos dez minutos de curiosidade que a notícia mobiliza no público. Dizem que não há nada mais velho do que o jornal de ontem e, assim, a maior parte das imagens traz em si uma vocação para ser esquecida. 2) para dar sobrevida a seus produtos, os grandes bancos de imagem proliferam fotografias sem qualquer identidade, composições estereotipadas e didáticas que ilustram qualquer coisa, notícia, palestra ou propaganda (esse foi também o tema de um post anterior). São imagens que já nascem indexadas e que têm como “pauta” as palavras-chave que deveriam lhes servir de interpretação. Ou seja, de um lado, uma imagem natimorta, de outro, uma imagem-zumbi que circula pelo mundo sem alma.
Em sua existência ideal, a fotografia tenta alcançar a difícil medida que lhe permitiria representar de modo singular uma experiência universal, conciliando os fatos cotidianos com sentimentos que afetam os olhares em diferentes tempos e lugares. Essas imagens, raras, tornam-se arquetípicas.
Um arquétipo é o avesso do estereótipo. O estereótipo retém os traços mais banais de uma experiência e a sacrifica em nome de uma comunicação fácil. O arquétipo é a imagem fundadora de certo tipo de experiência, e não faz concessões: só pode reaparecer como representação no lugar em que tal experiência possa ser plenamente compartilhada. O estereótipo dilui todas as singularidades. O arquétipo faz com que essas singularidades se adensem pelo diálogo com experiências afins que ocorrem em outros tempos.
A imagem premiada pelo World Press Photo evoca um arquétipo facilmente identificável, o da Pietà (literalmente, Piedade). Em sua forma originária, mostra Maria segurando Jesus morto em seus braços. É uma imagem que confronta um sentimento universal – a comoção de uma mãe diante do sofrimento de seu filho – com uma particularidade absoluta: o filho também é, nesse caso, Deus. Mas aqui esse Deus retorna à sua condição mais frágil e humana e, portanto, profundamente identificada com aqueles que estão diante da cena. Com esse corpo sem vida, experimentamos um sentimento ambíguo que resume o momento de formação do cristianismo: primeiro, o estranhamento quanto à ideia de que Deus, imaterial e distante, poderia existir num corpo mortal; logo em seguida, a angústia de reconhecer tardiamente que Deus esteve tão próximo, habitando esse corpo agora morto. A expressão de Maria não é coadjuvante: trata-se do amor incondicional de uma mãe que aceitou entregar seu filho a uma causa divina, e que o acolhe de volta com a mesma dedicação quando, ainda que tarde demais, ele volta a parecer apenas humano.
O modelo que deprendemos dessa imagem, que faz dela um arquétipo, e que dá sentido a outras experiências ligadas ou não ao cristianismo, pode ser assim descrito: ignoramos a luta de alguém que está à margem, seu sofrimento sequer tem existência para nossos olhares. É somente diante do sentimento universal de sua mãe que nos identificamos com esse personagem. Sua história é distante, mas reconhecemos bem o amor que ali se expressa. Em contraste com nossa negligência ou desprezo, o amor pleno que ali se revela projeta invariavelmente uma aura sobre o personagem. Algo de divino que só pudemos reconhecemos tardiamente e que se desdobra em dois sentimentos (cruciais ao cristianismo): a culpa e a compaixão. Numa Pietà, vemos projetado sobre um outro o amor que gostaríamos de merecer e que revela a escassez nosso. Como só podemos reconhecer esse amor pleno no momento em que a dor desse outro já está constituída, sempre há numa Pietà alguém que sofreu ou que morreu por nós.
Essa imagem não é apenas uma fórmula retórica, uma composição cenográfica. Primeiro, há esse rosto maternal que deve se construir inequivocamente mesmo que escondido detrás de um niqab ou de uma figura masculina. Depois, a imagem impõe certas condições para que possa existir. Essa forma arquetípica reaparece em momentos precisos, quando é preciso redimir nossa cegueira ou apatia diante de um herói marginal. Além de Jesus, esse personagem já foi, entre outras coisas, um jovem japonês contaminado pelo mercúrio derramado pela indústria, um ativista infectado pelo vírus da Aids, um africano agonizando num campo de refugiados e, agora, um muçulmano punido por reivindicar a liberdade de seu povo.
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