A fotografia e seus duplos – Parte IV

[06.fev.2012]

A história é bem conhecida. Em 1867, Dostoiévski visitava o museu da Basiléia, na Suiça, em companhia de sua mais recente esposa, Anna Snitkina, estenógrafa que havia colaborado com ele em “O Jogador”. Diante de uma pintura de Holbein, o Jovem, ele congelou, sem conseguir desviar os olhos. No rosto do escritor, a mesma expressão, mistura de êxtase e pânico, que costumava ter na iminência de um ataque epilético. No quadro do museu, Cristo, em tamanho natural, deitado em sua tumba.

Hans Holbein, o Jovem. Cristo na tumba, 1521-2

O pintor havia registrado na imagem, como de costume, as marcas do martírio. Mas introduziu algo novo, que jamais havia sido visto antes. Este corpo que ainda não começara a decompor-se – e que ao cabo de três dias ressuscitaria, erguendo-se incólume do sepulcro – estava ali, estacionado, tão vivo quanto morto. O Jesus de Holbein não repousa seu quinhão de eternidade: de olhos semi-abertos e abdômen contraído, prolonga infinitamente a dor da cruz e retém indefinidamente seu último suspiro. A boca aberta não emite nenhum som, mas o dedo da mão direita fala por todo o corpo e aponta-nos o Sudário.

O que viu Dostoiévski na pintura de Holbein, se não o próprio duplo? Seu próprio corpo como duplo vivo da imortalidade morta de Cristo. O corpo do Cristo como duplo morto de sua própria mortalidade viva. Tudo isso em suspenso, como em uma fotografia.

Em um de seus últimos ensaios, dedicado à solidão dos moribundos, o sociólogo Norbert Elias sublinha que um dos traços da modernidade é o modo “higiênico” como os moribundos são apartados da vista dos vivos: “jamais anteriormente se transportaram os cadáveres humanos, sem odores e com tal perfeição técnica, desde a câmara mortuária até a tumba.” Mas nem sempre foi assim. Elias transcreve um poema do século XVII, do poeta barroco alemão Christian Hoffmann von Hoffmannswaldau, para demonstrá-lo. Chama-se “Caducidade da Beleza” e nele a mulher amada é retratada em detalhes, apodrecendo em sua tumba:

 “Com o tempo por fim a morte pálida
com sua fria mão acariciará teus seios,
empalidecerá o coral maravilhoso de teus lábios”

Pouco a pouco, o poeta vê a donzela virar pó, do “gracioso andar” ao “relâmpago doce” dos olhos. Por mais mórbida que soe esta descrição, o poema tem uma intenção cômica que pode escapar ao leitor moderno. Nos últimos versos, o poeta mergulha na cova de seu amor e o que ele traz de volta é a única parte de seu corpo que resistirá à ação implacável da morte:

 “Tudo isso e muito mais por fim vai extinguir-se.
Só seu coração poderá vencer o tempo
pois em diamante talhou-o a Natureza”

Isto é, a amada que resiste aos apelos do poeta tem um coração de pedra, indestrutível como o diamante: prefere legar o melhor de si aos vermes vorazes que entregar-se aos braços de quem lhe enaltece os predicados. O poema é o último apelo do poeta: um convite à dama para que contemple o duplo decrépito que o futuro lhe reserva e ceda enquanto é tempo.

Quase três séculos depois, outra donzela, no México, contempla seu destino. É a senhorita Adela Fonseca que olha para a própria imagem encapsulada em uma jarra de vidro. A Adela da jarra, por sua vez, encara o fotógrafo.  Tal como Dostoiévski, a Adela de fora não consegue desviar os olhos da prisioneira. Está igualmente capturada pelo prenúncio do futuro mas, diferentemente da musa do poeta barroco, a Adela de dentro tem um coração mole: o sapato já lhe escapa do pé esquerdo, os ombros estão desnudos e, não fosse pelas mãos retendo delicadamente o vestido, o busto teria ido pelo mesmo caminho.

Adela Fonseca. Armando Saler— n. Chilapa (Mexico), 1930.

O sepulcro de cristal em que a imagem da donzela foi capturada não é apenas uma janela que se abre para o futuro. É uma encenação da transparência do meio fotográfico. A quem Adela irá entregar-se? A nós? Ao fotógrafo? Ou ela apenas nos dirige (ou a ele) um último apelo? Nem o veterano fotógrafo mexicano sabe a resposta. De fato, é ele quem realmente se pergunta, mirando a jarra transparente que a moça lhe oferece no estúdio de Chilapas: afinal, “o que pode uma fotografia?” Não, não exatamente. Creio que ainda é possível ouvi-lo murmurar: “Como pode, uma fotografia?”

O desejo oculto de toda imagem que tem outra imagem dentro de si é libertar-se de sua materialidade. Assim, a pergunta sobre o duplo é sempre uma pergunta sobre a alma das imagens, pois mesmo as fotografias mais estáticas são animadas. De olhos cravados na jarra em que a senhorita guarda seu último momento de recato, Don Armando dá-se conta que a chapa que está em vias expor acolhe as sombras de tudo que no mundo é sabido existir, de todos os sonhos jamais realizados, e de suas próprias expectativas de fotógrafo que o clique irá mais uma vez decepcionar. E se a jarra agora encher-se de água? Por quanto tempo a gentil Adela seria capaz de prender a respiração? Todo o tempo do mundo? Três dias, como Nosso Senhor? Ou apenas o tempo suficiente de uma exposição fotográfica? Voltar a olhar esta jarra é deixá-la verter, gota a gota, seus fantasmas. Por meio do duplo uma fotografia pergunta-se sobre o seu destino e as pelas obscuras razões da sua sobrevivência.

Nesta fotografia de Bibi Calderaro a água alcançou a borda da jarra. Nós já não estamos à espera de que o fotógrafo volte à superfície para mostrar-nos o que recolheu em seu último mergulho. O duplo aqui não necessita de qualquer encenação ou representantes. Estamos face a face com ele. Se as fotografias têm uma alma, acredito que este bem poderia ser um de seus retratos. Como crianças suspensas na água, que prendem a respiração e nos encaram, fotografias são duração e sonho represados prestes a romper os diques da imaginação.

Bibi Calderaro. Argentina, 1996.

 

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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