A fotografia e seus duplos II

[13.set.2011]

No duplo, a fotografia coloca-se diante de si mesma. Faz a invocação de seus poderes, mas os resultados são incertos.

Há este carte de visite do Imperador do Brasil e seu duplo, feito por Carneiro & Gaspar, em 1867. Nele, Dom Pedro II, aficionado e colecionador tenaz de fotografias, apesar da sobriedade da expressão, empresta sua real figura a uma anedota. O grande interesse de Sua Majestade pela técnica fotográfica pode tê-lo motivado a submeter-se a este “experimento” (na mesma ocasião, também foi feita imagem similar da Imperatriz Teresa Cristina), mas é impossível deixar de associar esta imagem à tradição taumatúrgica do caráter duplo do corpo do Rei: um corpo humano, mundano e transitório, e outro corpo místico, soberano e permanente. A “pessoa física” do monarca podia morrer, mas a sua “pessoa jurídica” era imortal.

D. Pedro II, Imperador do Brasil. Carte de visite de Carneiro & Gaspar, Rio de Janeiro, 1867.

Mas aqui, nesta fotografia, a harmonia ente o corpo perene do Imperador e corpo passageiro de Pedro foi rompida. O Imperador mira Pedro. Pedro mira o Imperador. Ou, talvez: o Imperador mire o Imperador; e Pedro mire Pedro. Difícil dizer. O que buscam um no olhar do outro? Que perguntas se fazem?

Colecionadas em álbuns, os cartes de visite eram a manifestação de uma utopia pequeno-burguesa. Diante de uma experiência cotidiana cada vez mais fragmentada e acelerada, onde os pertencimentos tradicionais começavam a esvair-se, o homem-de-bem do século XIX reconfortava-se no seu pequeno Novo Mundo de imagens, habitado não apenas por familiares próximos e distantes, mas, em pé de igualdade, por personalidades da política, da literatura, da ciência e da arte.

O cidadão honrado dos oitocentos deveria exercer um controle purgativo e disciplinado dos próprios vícios. Deste modo, o mundo das quimeras interiores, das angústias do ser e dos desejos ilícitos, permaneceria invisível à medida que o caráter fosse sendo esculpido. Utopia da visibilidade que se ergue em contraste com a uma agenda oculta do indecoroso e do selvagem, o álbum de retratos representava o sonho de que todos estes homens distintos formavam uma sociedade que, graças à moral exemplar de seus membros, conduziria seguramente ao “progresso social”.  É por isso que as poses nos retratos do século XIX são tão repetitivas: elas visavam demonstrar a afinidade de caráter da humanidade (ao menos, da parte branca e européia dela)

Por intermédio da fotografia, Pedro II procurava participar desta sociedade progressista consubstanciada no álbum de retratos. Tal como Luís Bonaparte, na França, que fazia-se fotografar como um indivíduo de classe média, também aqui o Imperador posava de “rei-cidadão”. Porém, neste surpreendente carte de visite, uma simples trucagem fotográfica, restabelece a dualidade recalcada do monarca. Mais do que simplesmente exibir Sua Majestade em trajes e atitudes de cidadão comum, a fotografia sugere que os dois corpos do rei são, ao contrário do que reza a tradição medieval, da mesma natureza: realização plena dos ideais do retrato burguês e da vocação democrática da fotografia.

Mas há ainda outra coisa em jogo neste retrato. Pensemos no próprio Imperador, com esta pequena fotografia nas mãos, observando olhar-se a si próprio, indeciso a respeito de quem é o corpo e quem é o fantasma. Quem é o soberano, quem é o cidadão-comum. Na condição de único rei das Américas, Pedro talvez medite, diante de sua Imperial Dignidade, que desta vez, talvez seja a pessoa física do “portador” transitório da realeza que acabe por sobreviver à pessoa jurídica transcendental do soberano. O Rei tinha esperanças de que a cena de mimetismo burguês que ele protagonizava no estúdio do fotógrafo demonstrasse sua afinidade com os homens comuns, mas, na duplicação de seu corpo físico, essa fotografia contém um adeus melancólico à monarquia.

Enquanto a fotomontagem do Imperador brasileiro dá um curto-circuito na soberania, permitindo que o corpo místico do rei se esfumace no jogo de espelhos do estúdio burguês, o mesmo recurso, agora utilizado em um retrato formal do governador do estado mexicano de Guerrero, pretende preservar, ou mesmo restabelecer, uma mística revolucionária em risco de se esvair.

General Julián Blanco, governador de Guerrero, com seu secretariado. Armando Salmerón. Chilapa, Mexico, 1915

 O governador é o General Julián Blanco, sentado, ao centro, com seus colaboradores, em algum dia do início seu curto governo, em 1915.  O autor da foto é Armando Salmerón, tido como o “fotógrafo da Revolução” no sul do México.  O retrato que fez de Emiliano Zapata, em seu estúdio, em Chilapa, é uma pequena obra-prima. Conta-se que o Comandante, em agradecimento pelos serviços prestados, presenteou Salmerón com uma 30-30, célebre carabina dos revolucionários mexicanos. O fotógrafo aceitou-a, mas acrescentou que só sabia “disparar” sua câmera, e era apenas isso que pretendida continuar fazendo.

O General Blanco havia liderado a insurreição na região e somente no início de 1914 aceitou subordinar-se ao comandante do “Exército Libertador do Sul”, isto é, a Zapata, que ele antes combatera. Na complexa e frequentemente anárquica luta de facções das forças revolucionárias mexicanas – o país chegou a ter um presidente cujo mandato durou apenas 40 minutos! – Blanco logo romperá sua aliança com Zapata, sendo nomeado governador provisório de Guerrero pelo Presidente “constitucionalista” Carranza.

Esta fotografia foi provavelmente tirada na época da posse. Uma foto convencional, de um chefe político local e sua equipe, tomada com toda a formalidade que caracteriza o gênero, não fosse pela curiosa figura em pé, junto à margem direita do quadro. Trata-se da aparição espectral do duplo do governador, de 30-30 na mão, pistola na cinta e bandoleiras cruzadas sobre o peito. O veterano general, envolvido em sedições e rebeliões desde 1893, agora é um homem da Constituição, mas desconfia que os novos trajes e a investidura que lhe confere o presidente não sejam suficientes para garantir-lhe a autoridade. Como se houvesse sido invocado por esta assembléia, o espírito da Revolução comparece no ato solene da instituição do novo governo estadual.

Para infortúnio do General Blanco, no entanto, o espectro de si mesmo como revolucionário não foi suficiente para garantir-lhe a devida proteção. Após oito meses de mandato, perseguido pelo comandante das tropas que lhe deveriam prestar obediência, refugia-se em Acapulco, onde é assassinado junto com o filho Bonifácio. Os correligionários que o traíram mandaram dizer ao Presidente Carranza que o governador havia matado o próprio filho e se suicidado. O motivo do gesto tresloucado está ironicamente relacionado a esta fotografia. Descobrira-se que apesar de sua aparente lealdade ao Presidente, o governador nomeado de Guerrero permanecera ocultamente fiel ao zapatismo.

Estes dois retratos em tudo opõem-se um ao outro. O duplo do Imperador convoca o Homem Comum; o duplo do General, o Incomum. Pedro procura assimilar-se; Julián, destacar-se. Enquanto o rei-cidadão despe sua mística; o governador-revolucionário traveste-se com a sua. Uma arrepiante semelhança, porém, atravessa estas imagens. Em ambas o retratado dissocia-se para vigiar-se a si mesmo. Pedro II aferra-se ao presente, na reciprocidade do próprio olhar; Julián Blanco reverencia a sombra de seu passado.

No entanto, o que cada um destes duplos acaba por inscrever nas fotografias é o futuro trágico dos respectivos governos. Foram ambos atropelados por eles: o duplo do Imperador Pedro II proclamou-lhe a República; o duplo do General Julián Blanco perpetuou-lhe a Revolução.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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