Na minha pesquisa de pós-doc, discuti os trabalhos de Christian Boltanski e Sophie Calle a partir da seguinte hipótese: muitas vezes, a fotografia seduz não tanto pelo que ela mostra, mas pelo que esconde, pela história que supomos existir e que ela não é capaz de contar. Essa pesquisa virou um artigo, mas não foi oportuno contar ali uma das origens dessa intuição. Esses dias, uma ex-aluna me escreveu pedindo para relembrar o episódio. Decidi compartilhar.
Em 2000, caminhando na região da Av. Paulista, eu achei uma carta escrita a mão numa folha de caderno: uma mulher respondia a um anúncio de um homem que procurava por sexo sem compromisso. Apesar do assunto, a linguagem era formal, nada erotizada. Ela explicava que morava desde a adolescência com uma família para quem trabalhava. Considerava essas pessoas sua própria família, mas dava a entender que toda sua rotina girava em torno das necessidades deles, e que ela não tinha uma vida social própria. Próxima dos 40 anos, ela dizia ter certas curiosidades e, por isso, respondia ao anúncio. Ela falava da fisionomia e do corpo de forma quase contratual, e assumia não haver ali nenhuma outra expectativa. Ao final, um nome e um telefone.
Essa carta ficou cerca de dois meses pregada numa parede em frente a minha mesa de trabalho. Já não havia mais o que reler, mas eu continuava olhando para ela como uma imagem. Como acontece quando lemos um romance, acabei inventando um rosto para aquela personagem, e desenhei a continuação dessa história de todos os jeitos: rolou, não rolou. Foi só aquilo, foi mais que aquilo. Ela desistiu de mandar a carta e jogou fora. O homem recebeu a carta e jogou fora. Considerei até a possibilidade daquilo ser parte da performance de algum artista que inventa e deixa cartas pelas ruas da cidade.
E aquele número de telefone? Cheguei a ensaiar algumas estratégias de abordagem. Mas tive um surto de bom-senso. Quantas vezes alguma coisa não nos pareceu melhor enquanto exisita como promessa, como fantasia, como utopia? Qual história seria capaz de mobilizar em mim o mesmo nível de imaginação?
Uma analogia: quem já não se viu cativado por uma foto que encontrou em algum lugar, anônima, sem nenhuma informação ou legenda? Ao contrário, quem já não morreu de tédio diante dos relatos eloquentes que acompanham o “slide show” da viagem que um parente compartilha conosco em seu “home theater”?
Algo assim permite entender a diferença entre a pornografia e o erotismo. A pornografia resolve o desejo e o esgota ao revelar tudo. Por isso sempre deixa certa frustração. O erotismo alimenta o desejo ao sugerir que há mais para ser visto.
O valor está no que se vê, mas também no que se esconde, no devir. O devir, uma espécie de futuro do pretérito contido naquela carta, era muito melhor do que qualquer desfecho que a história pudesse ter. Em vez da resposta certa, preferi guardar as perguntas. Joguei a carta no lixo.
Com o tempo, isso me ajudou a entender um valor que algumas fotografias possuem: uma justa medida entre o fato que apresentam e a história que não contam, entre seu poder de referência e seu silêncio, entre seu realismo e a abertura que deixam para o imaginário.
Gostava muito do trabalho de Christian Boltanski e de Sophie Calle, e passei a vê-los como artistas que sabem jogar com essa medida. Numa noite de insônia, esse episódio, esses artistas e algumas leituras se cruzaram, e nasceu o projeto de Pós-Doc que apresentei à Unicamp, chamado provisoriamente de “Sedução da Ausência”. Mas aí começa a história oficial.
Em geral, uma pesquisa acadêmica nasce de escolhas e justificativas bastante metódicas. Mas, uma vez ou outra, eu tive a sorte de ser escolhido por um tema.
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