
Foto de Klavs Bo Christensen rejeitada pelo concurso e imagem original
O assunto não é novo, nosso blog é que chegou atrasado…
Há alguns meses, o Olha Vê trouxe a notícia sobre esta imagem de Klavs Bo Christensen, que foi banida do concurso dinamarquês Picture of the year, por “excesso de Photoshop”. É uma questão bastante complicada, considerando que a manipulação não se refere a uma montagem, no sentido de acrescentar ou retirar elementos da cena, mas sim ao suposto abuso de filtros e correções.
Decidi retomar o tema porque me deparei com as regras do concurso que justificaram a exclusão. Entre outras coisas, diz o seguinte:
As fotos enviadas ao Picture of the year devem ser uma representação confiável daquilo que ocorreu em frente à câmera durante a exposição. Pode-se processar (post-process) as imagens eletronicamente desde que de acordo com as boas práticas. Pode-se cortar, queimar (burning), clarear (dodging), converter em preto e branco bem como normalizar a exposição ou corrigir as cores, mas preservando a expressão original da imagem. O júri e o comitê da exposição reservam o direito de ver o arquivo original RAW, “raw tape”, negativos e/ou cromos. Em caso de dúvida, o fotógrafo pode ser banido da competição.
Pra começar, alguém explica o que são “boas práticas”? Será algo parecido com os bons costumes?
É certo que houve manipulação, manipulação intencional, planejada, mas algumas questões devem ser colocadas:
– Considerando que a correção da imagem é prática recorrente no fotojornalismo, como estabelecer o limite a partir do qual esse procedimento se torna inconveniente ou antiético?
– Há uma diferença significativa entre as correções as que fazemos hoje no Photoshop e as que fazíamos no laboratório (e que, aliás, levam os mesmos nomes: burning, dodging…)?
– Existe um comportamento seja do filme ou do CCD que possamos chamar de “natural”? Em outras palavras, não são eles inevitavelmente programados pelo fabricante para responder ao estímulo da luz segundo uma programação?
– Se o problema é a “pós-produção”, como julgar as imagens feitas com as novas câmeras digitais que trazem cada vez mais efeitos semelhantes aos do Photoshop como recursos “pré-programados”?
É claro que essas perguntas são retóricas, porque já insinuam uma resposta.
Só pra comparar, a Associated Press diz em sua Carta de Novos Valores e Princípios:
As fotografias da AP devem sempre dizer a verdade. Nós não alteramos ou manipulamos o conteúdo de uma fotografia em nenhuma hipótese (…).
Pequenos ajustes em Photoshop são aceitáveis. Isso inclui cortes, dodging e burning, conversão em escala de cinzas, normalização de tons e ajustes de cores que devem se limitar ao mínimo necessário a uma clara e acurada reprodução (semelhante ao burning e dodging geralmente utilizados no processamento de imagens em laboratório) e que restauram a autêntica natureza da fotografia.

Foto de Mannie Garcia agenciada pela AP, e o cartaz de Shepard Fairey
Aliás, é nesta Carta de Princípios que a AP se baseou para questionar as imagens feitas pelo artista Shepard Fairey, na campanha de Barak Obama, como vimos nesses dias no blog do Clício.
Mas aqui está novamente o nó: qual é essa “autêntica natureza da fotografia”? É a natureza em si, tipo o movimento do sol, a força da gravidade, o moranguinho silvestre que nasce la longe? Ou é algo forjado pela tradição da própria fotografia? Se for, então, não é uma natureza em estado puro, é uma construção cultural, passível de adaptação, de atualização, de releitura ao longo da história. O que seria, por exemplo, “restituir a autêntica natureza da moda”, “a autêntica natureza da língua portuguesa”…?
No final das contas, trata-se de “respeitar a tradição documental” que, é certo, tem um grande valor. Mas, se for esse o caso, seria melhor assumir em vez de fazer malabarismos conceituais.
Tenho a impressão de haver certo saudosismo de uma pureza que nunca existiu, de uma espécie de Jardim do Eden do qual fomos expulsos pelo pecado que cometemos. O século XIX acreditou ter descoberto a Escrita do Sol, da Luz ou o “Lápis da Natureza”. E, às vezes, podemos achar que essas primeiras fotografias eram o paraíso, mas não, já eram o próprio fruto do conhecimento.
É um assunto velho e que ainda vai longe. Mas temos que reconhecer: deve ser mais fácil fazer uma “fotografia confiável” do que redigir regras para concursos e cartas de princípios para agências.
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