Poder Provisório é um projeto com várias camadas de pensamento: convidado a pensar a presença da fotografias no acervo do MAM-SP, Eder Chiodetto elegeu um recorte que evidencia a transitoriedade das forças – sociais, políticas e econômicas – que, em determinados momentos, se mostram hegemônicas. Reunindo um conjunto muito heterogêneo de imagens, ele aproveita para tensionar os poderes implicados numa instituição de arte e no trabalho de um curador.
Chiodetto – junto com uma equipe que sempre nomeia – tem uma assinatura autoral que se impõe. Esse é ao mesmo tempo seu mérito e seu risco. Sua fala evidencia uma engenharia minuciosa de produção de sentidos: a escolha e a edição das fotos, obviamente, mas também a disposição das paredes, a iluminação, o alinhamento das imagens, a distância entre elas, o skyline que formam, o design do catálogo e a forma de interação que propõe ao leitor. Também o texto, não apenas pelo pensamento que explicita, mas pela performance das palavras, pelo modo como ocupam as paredes, pela sonoridade que criam quando lidas (formando uma ladainha, como ele mesmo explica).
Não é esse controle justamente o exercício do poder de um curador? Isso também não lhe escapa. Ao contrário, somos logo alertados por uma série de provocações que traz em seu texto. São perguntas, mas são muito assertivas nas fissuras que abrem nos poderes representados nas imagens e implicados na própria exposição:
Quem diz o que pode e o que não pode entrar no acervo do Museu? Quem tem o poder de legitimar o que é ou não é arte? Quanto o mercado de arte pode lucrar com uma exposição que pontua doenças crônicas do capital? O quão legítima pode ser a crítica de um curador ao poder, se a própria curadoria é também um exercício de poder?
Mas não é no domínio de todas essas variáveis que está o maior valor desse projeto. Discutir a autoridade ali investida seria apenas uma forma perversa de cinismo, um duplo exercício de poder (o de fazer e o de dizer), se a exposição não demonstrasse também alguma brecha nos dispositivos de controle que envolvem essas imagens. Há um discurso muito seguro, mas há também uma leitura que permanece aberta. No diálogo promovido pelo MAM entre Felipe Chaimovich, Ivana Bentes e Fabiana Bruno, Eder Chiodetto encontrou outras tantas perguntas além daquelas que ele mesmo propõe em seu texto. Foi uma conversa densa. Mais do que o domínio que uma instituição ou um curador exerce sobre as imagens, é dos descaminhos de um acervo – ou dos descaminhos da própria história das imagens – que trata a exposição. A força crítica de Poder Provisório reside na capacidade de jogar com os lapsos, as lacunas, os desencaixes da história institucional que produziu esse conjunto de fotografias, aquilo que também põe em evidência a provisoriedade dos poderes que ali também atuaram. É um desses descaminhos que quero discutir.
O que Orlando Brito faz no acervo do MAM? Poderia tomar outros exemplos, mas vou pegá-lo para Cristo, e não só porque é o autor com maior número de imagens na exposição: ele representa bem um gênero da fotografia que tivemos que crucificar para construir uma noção de fotografia contemporânea, e que, de tempos em tempos, demonstra sua capacidade de ressurreição. Brito é um fotógrafo importante, podemos contar parte da história do país por meio de suas imagens. Mas não é fácil enxergar o modo como seu trabalho se identifica com o que temos visto nesse museu. Reconhecemos o diálogo fértil entre arte e documento, valorizamos as matizes e sobreposições entre uma coisa e outra. Mas estamos falando ali de um abismo que separa o fotojornalismo cotidiano dos caminhos trilhados pela arte moderna e contemporânea, que têm sido o foco desse museu e que estão bem representados nessa exposição. São imagens impertinentes, no duplo sentido: de não pertencimento e de rebeldia.
Como Orlando Brito foi parar no MAM, eu não sei. Pode ter sido uma aquisição desatenta ou movida por razões muito circunstanciais. Pode representar uma mudança temporária de rumo ou o esforço de conferir ao fotojornalismo o status de arte. Ou pode ter sido uma decisão corajosa e precoce de ignorar fronteiras estabelecidas entre os gêneros da fotografia. Ou pode ser que eu simplesmente esteja fazendo uma leitura precipitada, confundindo os critérios de exibição com o s critérios de aquisição do museu. Fato é que essas imagens poderiam passar toda a eternidade ali sepultadas no acervo, sem jamais retornar à luz do espaço expositivo.
Eder Chiodetto lembra que, neste mesmo ano, por sua indicação, o Mídia Ninja passou a integrar o acervo do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM. Decisão incomum e bastante questionada, mas não lhe faltaram argumentos: as imagens são boas, os lugares da fotografia estão mudando e o papel dos museus também (Felipe Chaimovich, representando o MAM no debate, falou bastante sobre isso). Ao ser convidado para olhar o acervo, Chiodetto já estava munido da abertura necessária para lidar com a presença supostamente desconfortável de Orlando Brito. Ele foi um pouco além, fez desse estranhamento a estratégia mesma de sua exposição.
O acervo de um museu é sem dúvida um dispositivo de poder (isso está colocado no texto do curador). Primeiro, é preciso dinheiro para fazer aquisições ou força institucional para atrair doações. Segundo, é em lugares como esse que se constrói a parte da história da arte que será narrada. Mas, assim como Benjamin convida a fazer com a história, pode-se escovar um acervo a contrapelo, para fazer saltar suas impurezas, dando a perceber as ausências e as sobras que as narrativas mais oficiais e aparentes tendem a minimizar.
Ivana Bentes ressaltou a diferença entre poder e potência. Vale tomar emprestados esse conceitos. É na capacidade de produzir discursos uniformes e legitimadores que está o poder do acervo. É na lacuna, no esquecimento, na contradição – nesse “mal de arquivo”, e como diz Derrida – que germinam suas potencialidades. A diferença entre uma história oficializada e a memória é que a primeira quer impor certa coesão do discurso, a segunda, tira proveito de suas hesitações e cacofonias. É porque esteve sempre sob o risco do esquecimento, e porque expõe o esgarçamento – ou a amplitude – das próprias políticas de aquisição, que Orlando Brito traz força crítica à exposição. Não sozinho, sem dúvida, mas com todos os outros olhares de quem se aproxima ou se afasta.
Não se trata usar o poder do museu para canonizá-lo como artista, aparando as arestas dessa convivência estranha. Ao contrário, parte-se daquilo que permanece tenso e vivo nas imagens de Orlando Brito, para explorar, sob forma de provocação, outros conflitos latentes que qualquer acervo pode conter. Mais do que construir monumentos a um herói do passado, o projeto convoca Orlando Brito a lutar ao lado do Mídia Ninja e de outros tantos olhares marginais que ajudaram a corroer os poderes. Lutar, senão exatamente pela mesma causa política, ao menos, por uma causa estética de que agora compartilham.
A exposição situa muitos matizes entre as categorias da arte e do documento, certamente? Mas não é só isso. Não vejo aqui as mesmas questões colocadas pelo curador em outra de suas exposições, Documental Imaginário (2012), que traz trabalhos construídos numa fronteira já bastante borrada entre esses territórios. Em Poder Provisório, acho que vale a pena resguardar os saltos, os solavancos. Sem isso, correríamos o risco de partir das diferenças e das contradições para buscar uma nova condição de uniformidade, de coesão, de apaziguamento. Para haver transgressão, ainda é preciso haver fronteira, para haver diálogo, é preciso haver distinção de vozes (sobre isso, vale ler um post de Cláudia Linhares). No debate, Fabiana Bruno referiu-se à exposição como “sismógrafo”, esse medidor de tensões liberadas abruptamente que desestabilizam o terreno em que nos apoiamos. Metáfora muito rica.
Hans Belting tem uma tese que pode ajudar a nomear umas série de problemas que se evidenciam nestes tempos em que a fotografia e o museu se repensam. Para ele, a história da arte impôs à cultura a ordem de seu método e de sua narrativa, apropriou-se de imagens de tempos e contextos muito variados que estavam longe de dialogar com aquilo que especifica nossa compreensão moderna de arte. Segundo ele, estamos novamente diante da evidência de que há uma história da imagem mais ampla, da qual a arte é apenas um de seus episódios (O fim da história da arte). Poder Provisório não convida apenas a pensar uma noção mais alargada de arte, capaz de amenizar todo estranhamento, de acolher todos os gêneros da fotografia. Convida a pensar o quanto algumas imagens, por sua própria rebeldia e independentemente de nossos dispositivos de controle, podem se infiltrar nas paredes sólidas que demarcam o lugar da arte para lembrá-la dos embates mais amplos que produzem dentro da cultura.
3 Respostas