Na ansiedade de afirmar seu caráter híbrido e ficcional, a fotografia contemporânea que buscávamos nos anos 90 correu dois riscos: primeiro, de explorar suas possibilidades de experimentação com extravagância e certo didatismo, pois não bastava ter conquistado tal liberdade, era preciso anunciá-la; segundo, de enfatizar exageradamente, numa outra fotografia a que se opunha, um purismo e uma veracidade que nunca existiram. Esse tempo passou, espero.
O que restou de todo esse esforço? Por um lado, aquela liberdade experimental pôde ser exercida de modo mais discreto, sem precisar anunciar-se sempre como uma causa. Por outro, aprendemos a enxergar a complexidade de outras estratégias que, um dia, nos pareceram tão simples e ingênuas.
Diante desse quadro, faz pouco sentido perguntar que imagem é essa que passamos a chamar de fotografia contemporânea. Não se trata mais de uma imagem, mas de uma postura, um modo de se colocar diante de qualquer imagem.
Apaziguada a ansiedade das décadas anteriores, pudemos reconhecer que a mais escancarada ficção constitui também um documento, porque o pensamento que a constrói e que lhe dá coerência não deixa de ser parte daquilo que chamamos de realidade. Poderíamos ter aprendido isso há muito tempo com a literatura ou com o cinema. E também o inverso disso: foi possível redescobrir o quanto há de invenção nos procedimentos que sempre chamamos de “documental”. Dois trabalhos – extraídos da Mostra “Nafoto – 20 Anos” – ilustram bem essa passagem.
No século XIX, uma imagem como essa parecia revelar com objetividade a identidade do índio. O fotógrafo certamente sabia o quanto a fotografia podia se prestar à estetização. Por isso, optou pela simplicidade. Ele diria, provavelmente, que numa foto como essa não existe cenografia, não existe pose, não existe interferência, não existe mediação, existe apenas o índio. Sem dúvida, essa imagem segue um padrão que visa garantir sua legibilidade, apoiado na tradição consolidada da ciência antropométrica. Mas um bom positivista diria que padrões desse tipo não foram criados, foram apreendidos da natureza. Trata-se modelos que pareciam tão espontâneos quanto a própria mecânica da luz com a qual a câmera opera.
As últimas décadas representaram um momento de intensa desconstrução de todas as crenças em torno do meio fotográfico. Depois desse processo, mesmo diante de um retrato, muito semelhante em sua estratégia aos retratos científicos do século XIX, nós já não somos os mesmos.
Um século atrás, diríamos que esta imagem não nos parece abusar da pose, da cenografia, dos ornamentos, dos recursos retóricos. Mas essa postura contemporânea maculou definitivamente nosso olhar. Hoje, não vemos outra coisa ali que não a construção de dois personagens tão idealizados, tão abstratos: a encenação do estereótipo masculino, com sua autoridade, sua força, sua virilidade; a encenação do estereótipo feminino, com sua submissão, fragilidade, sua dedicação. Hoje, em sua aparente simplicidade, essa foto superexpõe as estratégias de seu discurso e os mecanismos de construção desses tipos. Faz isso a tal ponto que se torna irônica, e permite ao olhar fazer o caminho inverso, desconstruir os personagens e também o funcionamento da imagem.
Eu soube depois, que o rapaz era mesmo um policial e, a garota, sua mulher. Isso não invalida este raciocínio, ao contrário, apenas afirma a nova complexidade que podemos reconhecer na fotografia: nossa realidade social é feita de papéis que nos esforçamos para representar. Ou seja, é feita de imagens. A fotografia não é, portanto, apenas um registro dessa atuação, é um de seus palcos.
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