
Garapa, São Vito (Daguerreótipo)
Como parte do projeto Morar, o coletivo Garapa produziu uma série de daguerreótipos de objetos que fazem referência ao Edifício Mercúrio, recentemente demolido no centro de São Paulo. Para essa empreitada que durou uma semana, contaram com a ajuda do fotógrafo Fernando Schmitt, e o know-how de Chico da Costa, maior especialista em daguerreotipia no Brasil. Eu apareci por lá duas vezes para bisbilhotar.
Achei que tinha uma boa idéia de como a coisa funcionava, mas é impossível supor as sutilezas do ritual que os daguerreótipos exigem: além de um arsenal muito peculiar de apetrechos, alguns construídos, outros adaptados, há um modo preciso de manipular as placas, passagens por vapores e banhos diversos numa sequência quase absurda, o controle da sensibilização pelas pequenas mudanças de coloração, um modo de duvidar do fotômetro e intuir o tempo de exposição na câmera, a secagem diretamente sobre o fogo… Chico é um cientista, tem formação em química. Mas é também um artista e, para tornar a dinâmica mais emocionante, parece se guiar mais pelo desenho dos gestos do que pelas fórmulas. Ele é o cirurgião que sempre lembra de uma piada enquanto sutura uma artéria coronária.
Alguém ali disse que a daguerreotipia tem mais a ver com alquimia do que com ciência. De fato, é uma performance tão improvável, que tive a sensação súbita de que a história da fotografia estava em risco, de que por pouco ela poderia não ter acontecido, de que havia um elemento de acaso em seu surgimento.
Uma lenda diz que Daguerre teria descoberto acidentalmente a “revelação”, quando notou em seu armário que a imagem de uma placa mal exposta havia sido intensificada pelo vapor do mercúrio vazou de um termômetro quebrado. Além de ser uma história duvidosa, não é desses acasos espetaculares que falo, mas de uma espécie de jogo, uma errância nas experiências e na vida desses pioneiros que pode ter colaborado para o surgimento da fotografia.
Sabemos que todos os conhecimentos necessários à fotografia já estavam disponíveis na virada para o século XIX, e temos dito que aquela década de 1830 era o momento em que ela tinha de acontecer. Isso explicaria porque vários pesquisadores chegaram simultaneamente a seus processos fotográficos, de modo totalmente independente.
As peças se encaixam bem, mas sempre corremos o risco de projetar nesses fatos uma visão excessivamente determinista. Acho rica a possibilidade de sentir a história como algo que permanece em risco: é preciso fazer por merecer os acertos do passado, é preciso não se tornar cúmplice dos erros cometidos. Experimentar um processo tão incerto quanto um daguerreótipo reproduz essa responsabilidade numa micro-escala: não se trata apenas de brincar de repetir o passado como mero simulacro, mas de atuar sobre as engrenagens que parecem encadear os fatos da história, mas exatamente onde nelas existe uma folga, um “jogo”.
Não é preciso negar a tese sobre o quanto aquele momento do século XIX era favorável à fotografia. Havia ali um circulação intensa de conhecimentos diversos, mas havia também uma disponibilidade para o risco, para o erro, havia o ócio típico daquela sociedade. Isso permitiu a esses cientistas empíricos, alguns deles amadores, a experimentação de combinações improváveis de técnicas e substâncias, algo que, vez ou outra, resultava numa descoberta bem sucedida. A fotografia não foi a colocação em prática de um movimento já calculado. Foi o resultado de uma sucessão gigantesca de tentativas e erros. Isso está bastante claro nas cartas trocadas entre Niépce e Daguerre. Por exemplo, depois de um resultado bem sucedido associando o iodo à prata, por sugestão de Daguerre, diz Niépce: “eu não sei como e porque esse efeito ocorreu sem que eu pudesse vir a reproduzi-lo, procedendo da mesma maneira (…). E sobre instabilidade da imagem: “e aqui, lamentando vivamente, eu lhe confesso ter tomado um caminho equivocado durante tão longo tempo, e o que é pior, tão inutilmente” (carta de 1831, in Adrien Metienne, La découverte de la photographie en 1839, 1841).
E podemos fazer outras especulações: que diversidade de coisas Hercules Florence não deve ter utilizado para tentar fixar suas fotografias? A urina, que chegou a testar com esse propósito (Kossoy, 1980), funciona aqui como uma alegoria poética de sua ampla inventividade e de todos os descaminhos que soube enfrentar.
Podemos pensar o papel dessas errâncias não apenas no desenvolvimento das técnicas, mas também na biografia desses personagens. A grande questão que ficamos tentados a colocar sobre Florence é: como ele chegou à fotografia mesmo distante da efervescência científica e cultural da Europa? Mas poderíamos inverter essa colocação e imaginar que ele só pôde chegar a fotografia pelas necessidades e surpresas que encontrou no Brasil. E, voltando à Nièpce, talvez sua dedicacão à heliografia tenha dependido de seu fracasso na divulgação e na comercialização do Pyréolophore, projeto que desenvolveu com seu irmão Claude daquele que é considerado o primeiro motor a combustão da história.
Daguerre era um pintor medíocre e não tinha formação científica, mas foi uma figura fundamental. Sua genialidade foi a de saber agenciar oportunidades, conhecimentos e personagens que poderiam não ter se cruzado naquele momento, e de saber motivar seu sócio nos momentos de fraqueza: “o senhor vislumbrou a questão de um modo menos desesperador, eu não pude hesitar em responder ao apelo que o senhor me fez” (1831), disse a ele Niépce numa carta. E, mesmo com toda essa perspicácia, Daguerre só se interessou em conhecer Niépce depois de alguma insistência de Vincent Chevalier, o ótico parisiense que trabalhava para ambos. Não conheço quase nada sobre os outros inventores.
O que posso lembrar agora sobre Fox Talbot não diz respeito a como chegou à fotografia, mas para onde foi a partir dela: ao lado de John Herschel, Talbot era um dos mais “científicos” dentre todos esses pioneiros, mas acabou por se tornar o que mais se esforçou para fazer da fotografia uma arte. Imaginava inicialmente que seus fotogramas, os photogenic drawings, o auxiliariam em suas pesquisas botânicas. Provavelmente, não serviram para muita coisa, mas eram realmente belos.
Incomoda-me a idéia de que o surgimento da fotografia já estava perfeitamente determinado pelo progresso de certas técnicas. Mas, uma vez que tenha surgido, a fotografia pode conter em si, em escala diminuta, todos os sentidos da modernidade. Ela compõe aquilo que Walter Benjamin chamou de estrutura monadológica: “o objeto histórico encontra representado em seu interior sua própria história anterior e posterior” (Passagens, N 10,3). A fotografia condensa em si a ciência de sua época, a crença no progresso, mas também o seu fracasso, as incertezas, movimentos em falso, e uma disposição contemplativa que também é típica de seu momento: uma flânerie, uma aventura tão errática quanto criativa.
E pode acontecer que mesmo um daguerreótipo feito mais de 170 anos depois ainda revele os riscos que o constituem. Estava lá o Chico da Costa, nosso colega daguerreotipista, muito bem assistido, com duas placas já colocadas dentro de chassis, prontas para exposição em sua câmera 4×5. Uma seria destinada à imagem de São Vito, a outra, à uma boneca Hello Kitty (objetos emprestados à Garapa pelos antigos moradores do edifício demolido). Fernando Schmitt já contava o tempo de exposição do segundo daguerreótipo quando Chico retornou com o primeiro revelado: não havia nele nenhuma imagem. O que aconteceu, descobrimos em seguida: a outra placa estava sendo exposta pela segunda vez, promovendo esse encontro inusitado entre dois personagens de culto surgidos em eras muito distintas. E assim experimentamos amplamente a história da fotografia, em suas certezas e em suas surpresas.
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