Imagine que você tenha tido um encontro amoroso numa festa, talvez num bar. Noite alta, vocês já juntos, teriam pedido ao garçom uma fotografia pelo celular. Em meio aos afazeres, a bandeja de lado. Entre vocês e aquele homem, uma eternidade. Entre a ação do dedo e a pausa, um silêncio instantâneo. Segurando o celular, o homem pensou no cansaço, no patrão, nas contas a pagar. Lembrou da mulher, da vizinha gostosa, da batata frita pedida pela mesa ao lado, do chope do cliente mal-educado esquentando no balcão (por que será que a maioria dos garçons está sempre disposta a exercer com tanta eloquência e alegria a tarefa de fotografar seus clientes?) O burburinho, os pensamentos, o dedo à beira de pressionar o botão, o casal diante do aparelho, o sorriso, o entendimento mútuo de que, apesar da correria, as memórias (ah, as memórias….); o dedo já apertando o botão, o tempo dilatado, a algazarra… De repente, um zumbido no ouvido, um sopro. Pronto: o dedo escorregou, o corte aconteceu. Sobre o fluxo contínuo do tempo, manifestou-se o instante, ergueu-se a distinção: nasceu ali uma fotografia.
O celular de volta ao bolso, o garçom de volta ao salão. O tempo mecânico de volta à percepção. Que zumbido teria sido aquele que o garçom mal reparou logo antes de o dedo escorregar?
Agamben sugeriu uma vez que o anjo da fotografia era o anjo do último dia, o anjo do juízo final. No instante supremo, cada homem estaria entregue a seu gesto mais ínfimo e cotidiano. No entanto, graças à lente fotográfica, o gesto mais banal e ordinário apareceria carregado com o peso de uma vida inteira. Numa fotografia, qualquer atitude irrelevante e trivial, mesmo boba, resumiria em si o sentido de toda uma existência. O poder do gesto (de convocar e concentrar potências angélicas) encontraria na foto seu lugar: seu lócus, sua hora tópica. Na foto, o anjo apocalíptico imortalizaria a vida e faria da eterna repetição da fotografia um modo de carregar de destino aquele gesto paralisado. Por isso a fotografia exigiria de nós um acerto de contas: acerto com o último dia, num tempo mais atual e mais urgente do que qualquer tempo cronológico. Para Agamben, a exigência com que nos interpela uma fotografia nada teria de estético: “de tudo isso, a fotografia nos exige que nos recordemos; as fotos são testemunhas de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias” (Agamben, 2005: 8).
Teria sido o anjo do último dia que soprou no ouvido do garçom?
Como Aganbem, Walter Benjamin também via anjos por aí, pairando sobre as ruas, tomando forma nos quartos dos meninos e encarnando a tragicidade moderna. Os anjos povoam o pensamento de Benjamin, como tão bem analisa Jeanne Marie Gangnebin, subvertendo a ideia de uma posição estável, de uma pátria definitivamente conquistada, de um enraizamento substancial, seja ele de ordem teórica ou existencial, marxista ou judaica. Não são mensageiros da vontade divina, arcanjos ou querubins. São anjos menores, efêmeros, frágeis. Vivem apenas o instante de seu hino para, em seguida, se desvanecer na sombra. A cada momento, anjos sempre novos, formam legiões infinitas, criados para, depois de ter entoado seus mantras, deixar de existir, como cigarras. Os anjos de Benjamin são cigarras de zumbidos imperceptíveis a todos os ouvidos: cada cigarra-anjo encontra a orelha que lhe cabe, canta um zumbido íntimo (embora faiscante como relâmpago) e depois silencia, caído na noite. Aparecem na obra de Benjamin, às vezes discretos, outras como clarões, deitam-se na escuridão tão de repente quanto surgem: Benjamin os incorpora no texto absorvendo a temporalidade própria desses seres de fronteira.
Anjos-cigarras-vaga-lumes: entre o zumbido da cigarra e a luminância do vaga-lume, o anjo de Benjamin aparece como imagem de um tempo muito especial. O agudo de seu sopro desmonta a corrente do tempo encadeado por instantes idênticos e equivalentes. Reivindica uma “atualidade simultaneamente resplandecente e frágil, o tempo de cantar um hino e, em seguida, de se aniquilar” (Gagnebin, 1997: 125). A presença “estrangeira/estranha” dos anjos introduz, na cronologia linear, homogênea e sempre igual dos relógios, pequena cesura, uma fenda imperceptível, um barulho frágil, embora incisivo, que transforma o continuum temporal, “tão ocupado a se perpetuar a si mesmo”, numa experiência entrecortada, lacunar, fulgurante e evanescente. O sopro do anjo-cigarra-vaga-lume entalha no presente uma marca de atualidade, na brevidade do instante singular e efêmero, possibilitando uma experiência de tempo sempre ameaçada (e possibilitada) pelo esquecimento. Depois do zumbido da cigarra, da entoação de seu hino, o anjo de Benjamin abandona seu posto e deixa, sem rancor nem ressentimento, seu lugar ao próximo anjo, simultaneamente semelhante e diferente (gagnebin, 1997: 135). “Nas ‘interferências’, nas cesuras do contínuo histórico, ali onde o tempo para e onde retomamos fôlego, ali também, de repente, sopra um vento fresco, aquele no qual o Deus bíblico gostava de se manifestar aos profetas, aquele que lembra aos homens a possibilidade e a urgência da felicidade” (Gagnebin, 1997: 134).
O anjo-cigarra-vaga-lume é o guardião do tempo do acontecimento e também da felicidade. Anjo guardião da duração. Teria sido ele a soprar a brisa no ouvido do garçom?
Provavelmente existem tantos anjos quantos nós – desajeitados, incompetentes, de causas impossíveis, que fazem milagres como brotarem ipês no cerrado ou florescerem árvores no inverno de Berlim. Anjos que riem, outros que meditam. Provavelmente também cada fotografia foi soprada pelo seu anjo: anjos benjaminianos, anjos-cigarras, anjos-vaga-lumes; guardiões do último dia, guardiões do esquecimento, anjos da lembrança, guardiões da memória…. aparecem e desaparecem, brilham e cantam seus mantras na velocidade do pensamento. Ventam segredos infinitos, espírito e corpo, naturais e técnicos, leves e pesados, humano e inumano.
Os anjos que sopram fotografias vivem no templo do tempo, entre o terreno e o celestial. Descem para cá como insetos alados. De aparência genericamente humana são, em simultâneo, corpos do não representável, do não humano. De certo, devem gostar de fotografias porque materializam presença em modo de ausência – como eles, fotografias são imagens de fronteiras. E o que torna possível a percepção de sua presença é o sopro, a brisa. Ela nos obriga a levantar os olhos em sua direção. O vento atravessa a lente, levanta os olhos da câmera e por isso (porque quem é olhado ou se julga olhado levanta os olhos) fazem também o gesto se voltar para a câmera. As coisas que os anjos veem os veem como eles as veem, num breve piscar do obturador. Talvez por isso, sorrimos; e, às vezes, tememos. Nosso olhar é atraído pelas lentes das câmeras, por mais breve que seja, porque vemos nelas os olhos incorpóreos dos anjos da duração. Olhos que já viram futuro e passado, visões que ventam tempos simultâneos. Nos olhos desses anjos experimentamos nosso próprio futuro; sentimos a profundidade do passado, daquilo jamais retornará e, simultaneamente, estará sempre conosco.
Mas por que soprar fotografias em vez de impedir que o menino que aprende a andar não machuque os dedinhos numa gaveta? Talvez porque a fotografia renove a esperança de fazer o tempo do instante (momento em que o anjo entoa seu zumbido) tocar o tempo celestial da duração.
Provavelmente saibam esses anjos que, diante de uma fotografia, estamos sempre diante de uma matéria imaginária (e real) do tempo.
Assim, andam por aí os anjos menores, participam das hesitações, das dúvidas, dos desamparos do mundo profano, espreitam imagens sempre em vias de nascer e, quando finalmente sopram, nos retiram do presente contínuo para fazer desse instante o presente perpétuo, sempre diferente e o mesmo, composição entre o esquecimento e a lembrança, o visível e o invisível, o nítido e o turvo. Assim, escolhem garçons como mensageiros de brisas fotográficas e carregam de destino esses instantâneos.
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Este texto se apropria, provavelmente de modo indevido, de ideias que não são exclusivamente minhas. Em primeiro lugar, uma homenagem ao professor Mauricio Lissovsky que, em suas aulas, me fez perceber pela primeira vez a brisa dos anjos fotográficos. Tenho quase certeza de que foi ele quem disse que o tempo era o anjo da fotografia, ou talvez tenha sido eu mesma que, tomada de inspiração por sua irreverência pensante, tenha imaginado e fixado como minha essa visão. Penso também com as palavras de Jeanne Marie Gagnebin, Giorgio Agamben e Walter Benjamin. No próximo post continuamos a conversar sobre a fotografia daquele encontro amoroso.
Bibliografia:
Agamben, Giorgio. O dia do Juizo. In Profanações. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
Gagnebin, Jeanne Marie. O hino, a brisa, a tempestade: dos anjos em Walter Benjamin. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
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