Este texto foi escrito para por ocasião do II Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo, realizado no Itaú Cultural, em que tive a oportunidade de entrevistar a artista Claudine Haas, ou melhor, Claudia Andujar. Acompanho o trabalho de Cláudia e sua trajetória desde os anos sessenta e setenta como leitor da revista Realidade. Mais tarde, tive a oportunidade de estar com ela em diversas ocasiões. A única certeza era que o tema do Fórum – Fora de Casa, Fora do Eixo, Exílios e Migrações na Fotografia – tinha fortes conexões com sua experiência de vida.
Claudia nasceu na Suiça, passou a infância na Hungria, na cidade de Transilvânia, que fica na divisa com a Romênia. Durante a Segunda Guerra Mundial sua cidade foi anexada à Hungria. Como refugiada foi para a Suiça e posteriormente para os Estados Unidos. Lá teve sua educação e formação cultural e tornou-se artista plástica. Com vinte anos, em 1955, veio ao Brasil pela primeira vez, por razões familiares e logo se sentiu em casa. Não sabe explicar o porquê, mas o contato humano foi tão emocionante e intenso, que logo se apaixonou pelo país. Encontrou aqui um calor humano que não havia encontrado nos lugares por onde havia passado anteriormente.
Mas, Claudia gosta de enfatizar que toda sua trajetória de vida, inclusive com a fotografia, está muito ligada aos seus primeiros vinte anos, ocasião em que teve a oportunidade de viver em diferentes lugares, presenciar o horror da guerra e a destruição dos laços humanos e familiares.
Para conhecer mais e melhor o povo brasileiro, viu que somente a pintura, que havia estudado nos Estados Unidos, não dava conta de suas necessidades expressivas. Foi então que surgiu em sua vida a fotografia. Através dela pode conhecer melhor o povo brasileiro – aquele que vive no interior deste país tão generoso e tão diverso e grandioso geograficamente. Seu interesse sempre foi e continua sendo tentar entender porque as pessoas fazem o que fazem. Tem consciência de que o comportamento humano tem raiz na cultura, mas, também sofre influências de ordem psicológica.
Essa sua necessidade de compreender o Outro, sempre incluiu, necessariamente, um tempo de convivência alongado, o suficiente para tornar-se invisível diante desse Outro para obter imagens mais próximas possível da realidade. É complemente avessa à idéia fotografar apressadamente, sem o mínimo conhecimento do homem e do seu entorno espacial. Para ela, o fotógrafo que tem esse tipo de comportamento não valoriza minimamente as relações humanas de cumplicidade e intimidade que envolve o ato fotográfico.
Desenvolveu seu notável trabalho de foto-repórter free lancer, entre 1958 e 1971. De 1959 a 1961 publicou nas revistas Life, Look, Aperture, entre outras. Na Editora Abril, trabalhou para as revistas Realidade, Quatro Rodas, Cláudia e Setenta. A partir de 1972 passou a se dedicar exclusivamente à causa Yanomami, que conheceu no início dos anos setenta, ocasião em que participou de uma grande reportagem sobre a Amazônia para a revista Realidade. Para iniciar este novo momento em seu trabalho com a fotografia, deixou sua atividade como free-lancer e conseguiu uma Bolsa da Fundação Guggenheim (em 1972 e 1974) para realizar a documentação fotográfica sobre os Yanomami. Mais tarde, outra bolsa da Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Foi o começo de uma nova vida ligada à defesa dos Direitos Humanos daquele povo, do seu território e à divulgação de sua cultura.
Durante 14 meses apenas conviveu e observou o cotidiano daquela comunidade indígena a fim de estabelecer os processos de confiança mútua. Só após esse conhecimento mínimo é que ela começou a fotografá-los. Cláudia costuma afirmar que sua relação com os índios Yanomami, fio condutor de sua trajetória na fotografia e na vida, é essencialmente afetiva. Mais tarde, Cláudia agregou à sua atividade artística a militância política. Sua ação como cidadã e artista se politizou. Seu engajamento ético e sua sensibilidade estética transformaram radicalmente sua vida. Através da ONG Comissão Pró-Yanomami atuou fortemente na demarcação das suas terras, conquistada somente nos anos noventa.
Suas fotografias sobre os índios Yanomami são instauradoras de um mundo de incrível coerência centrado no aspecto humano e na confiança mútua. É um trabalho bastante espiritualizado, pois ambos – os índios Yanomami e Cláudia estão concentrados na conexão possível entre a fotografia, a sinceridade e o que há de divino naquele momento mágico em que os índios se abraçam e se enlaçam; se pintam – gestos cotidianos que na sua fotografia se transfiguram de modo inquietante e cósmico. São imagens profundas, diretas, de profundo respeito, sem artifícios de embelezamento, que evidenciam a condição humana, motivação presente em toda a sua obra.
Cláudia rompe com maestria o limite entre a fotografia documental e a abstração, e viabiliza um universo poético intenso e de rara beleza. Nisso reside sua potência de artista: trazer a fragilidade humana, seu cosmos e suas crenças para a esfera do visível. Por ocasião de sua exposição em 2005 na Pinacoteca do Estado e lançamento do seu livro A Vulnerabilidade do Ser, pela editora Cosac Naify, ela afirmou ao rever o seu arquivo: “o que chamou a atenção ao rever meu trabalho é que em todos os momentos eu sempre procuro no Outro a beleza que vem desse amor que tenho pela Humanidade”.
Para finalizar quero lembrar que Cláudia também publicou nas revistas Bondinho e Fotografia, que tinham como editor de fotografia, George Love, seu companheiro. Juntos eles organizaram em setembro de 1974, no Museu de Arte de São Paulo, a I Semana Internacional de Fotografia, ocasião em que tiveram a oportunidade de fazer a aquisição de muitas fotografias de consagrados autores internacionais. Cláudia publicou muitos livros, entre eles: Yanomami, em 1978, e Amazônia, ambos pela editora Praxis; Yanomami, em 1998, por ocasião da 2º Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba; A vulnerabilidade do Ser, em 2005 e Marcados, em 2009, ambos pela Cosac Naify. Possui fotografias nas coleções dos principais museus do mundo.
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Dentre as várias questões que preparei para Cláudia Andujar, a primeira visava expor um fato importante muitas vezes ignorado, também pelos estudos estrangeiros que tem sido dedicados aos livros de fotografia brasileira: pedi a ela que discorresse sobre a ação da ditadura militar que censurou seus dois primeiros livros. Os textos, de Darcy Ribeiro e do poeta Thiago de Mello respectivamente, tiveram que ser retirados dos livros para garantir sua distribuição. Cláudia nos brindou com respostas precisas e com informações preciosas que se tornaram públicas para grande maioria da platéia. Muitos vieram me agradecer por tomar conhecimento, pela primeira vez, de informações que requerem, além de pesquisa, relações de proximidade e intimidade. Do mesmo modo que Cláudia realiza seu trabalho.
Seu discurso foi coerente, engajado politicamente, evidenciando a relação de amor, respeito e tolerância com os Yanomami. Após o debate, quando perguntei o que ela realmente sentiu quando se deparou com esses índios pela primeira vez, ela simplesmente respondeu: “eu fiquei tão emocionada que percebi logo que apenas estava retornando a um mundo ao qual um dia eu também pertenci. Foi uma descoberta da minha ancestralidade. Me senti voltando para casa”.
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