A fotografia e seus duplos I

[08.ago.2011]

Adenor Gondim. Cosme e Damião. Bahia, s/d.

Há esta fotografia, de Adenor Gondim. Está em seu blog, chamado “Apenas Bahia. Apenas Fotografia”.  Em um “Café Fotográfico” que compartilhamos, em Salvador, em 07/06/2011, convidados pelo José Mamede, contou-nos sua história. Procurava um fundo para fotografar os santinhos que havia comprado para presentear o filho, mas nada o satisfazia. Percebeu, jogada em um canto, esse retrato feito em Bom Jesus da Lapa. Os santinhos encontraram aí, finalmente, o seu lugar.

Os contrastes, as dualidades são aqui de diversas naturezas: de escala (entre pessoas e santinhos de cerâmica), de natureza (entre seres vivos e bonecos), de colorido (entre monocromia e policromia), entre mídias (fotografia e escultura) e, claro, entre sagrado e profano, pois os romeiros são sugados, por intermédio da fotografia, para o “nicho” dos santos. O curioso oratório, no entanto, realiza ainda outra operação, bem mais misteriosa. Os santinhos de barro ganham vida e humanizam-se, integrando-se à família de romeiros; e esta, a despeito da monocromia, revive ao ser refotografada, tomando emprestado para si um momento que é o da atualidade de Cosme e Damião e do ato fotográfico que os reúne.

Antes de me defrontar com essa imagem de Gondim, jamais havia me perguntado pelo deus da fotografia ou por seu santo padroeiro. Poucos meses depois do anúncio da invenção, em 1839, Nepomucène Lemercier leu diante da Academia Francesa um poema alegórico em honra da “descoberta do engenhoso pintor do Diorama”, intitulado “Lampélia e Daguerre”. No poema, duas ninfas filhas de Apolo (o sol), Pirófise (ninfa do calor) e Lampélia (ninfa da luz), disputam o amor de Daguerre. Enciumada da irmã, Pirófise incendeia o Diorama – sinistro que de fato ocorreu, também em 1839. Nessa mitologia inventada, Apolo termina por consentir no casamento entre Daguerre e Lampélia, tendo o matrimônio dado origem ao pequeno Daguerreótipo.

Esta eventual ancestralidade pagã da fotografia não prosperou. Afinal, convém ressaltar, Joseph Nicéphore Nièpce, inventor da “heliografia”, deve seu nome de batismo a São Nicéforo, Patriarca de Constantinopla (806-815), canonizado em virtude de sua inquebrantável defesa das imagens sagradas diante dos ataques de poderosos iconoclastas bizantinos. A despeito da feliz coincidência, São Nicéforo de Constantinopla não foi escolhido padroeiro da fotografia ou dos fotógrafos. Consultei alguns profissionais a respeito da existência de um santo protetor de seu ofício. Os poucos que arriscaram uma reposta estavam quase seguros que “deveria” ser Santa Luzia. Mas a resposta correta é Verônica, aquela que ao enxugar o rosto do Cristo, durante a Paixão, imprimiu no véu os traços da Santa Face. O “Véu de Verônica”, supostamente originário da Bizâncio de São Nicéforo, foi um dos objetos de culto mais reverenciados durante a Idade Média. Suas exibições públicas encerraram-se no século XVII, quando, segundo alguns, teria “desaparecido” do Vaticano (ou, segundo outros, desbotou até não poder mais ser discernida qualquer imagem).

A Verônica e o Sudário são, por assim dizer, os objetos paradigmáticos da “aura”, tal como Walter Benjamin a formulou, na “Pequena História da Fotografia”: a aparição de algo como distante, por mais próximo que esteja. A Fotografia, a Verônica e o Sudário têm em comum o fato de serem imagens aquiropoéticas, isto é criadas sem o auxílio da mão humana.  E é notório que a fotografia desempenhou um papel importante no culto moderno destas relíquias. Georges Didi-Huberman argumenta, por exemplo, que depois de fotografado por Secondo Pia, em 1892, o Santo Sudário adquiriu uma importância teológica e litúrgica que nunca havia tido antes. Não apenas o “negativo” de Secondo teria permitido ver ali um corpo e um rosto, como a própria fotografia tornou-se uma chave para a compreensão destes objetos, que teriam tocado “a luz e o corpo de Nosso Senhor”.

Verônica, portanto, fora a primeira fotógrafa e nada mais natural que o Vaticano encarregá-la da proteção do ofício. A questão, porém, é mais complexa, pois a mesma santa acumula também a proteção dos “empregados das lavanderias”.  A eleição de Verônica para esta função provavelmente decorre de um gesto litúrgico: a ostensão, que consiste em erguer um objeto sagrado nas mãos e exibi-lo à vista de todos. É em ostensão do véu que Verônica é sempre representada, e é também em ostensão que são apresentados os resultados de uma roupa bem lavada.

Verônica / Omo

É fácil perceber que há outra ordem de semelhança operando sob os auspícios da santa. É o banho da cópia, pois sem ele, sem a mediação das forças invisíveis da visibilidade que agem durante este mergulho, a imagem – em toda a sua pureza – não surgiria magicamente sobre o papel.Podemos supor que, com a difusão da tecnologia digital, a semelhança que um dia existiu entre os fotógrafos e as lavadeiras venha a ser esquecida. Neste dia, estou seguro que seus novos padroeiros hão de ser Cosme e Damião, como na Bahia já se sabe há muito tempo. Na Bahia e na Nigéria, pois na tradição Yorubá, assim como em muitas culturas africanas, o nascimento dos gêmeos é uma benção para a família. São chamados Ibeji (“nascer dois”) Na Nigéria, a fotografia de gêmeos pode substituir as pequenas estatuazinhas pelas quais Ibeji é representado.

Stephen Sprague. Taiwo ostenta um ibeji fotográfico. Nigéria, c. 1970

Mas pode acontecer de um dos gêmeos morrer antes de haver sido fotografado. Nesse caso, caberia à própria fotografia restabelecer o duplo prematuramente rompido.  Foi o que aconteceu com Taiwo, que vemos abaixo segurando o retrato duplicado de si mesma, quando bebê, representando a si e sua irmã gêmea, falecida antes que uma fotografia das duas juntas fosse tirada. Quando os gêmeos eram de sexos diferentes, não era incomum que a criança sobrevivente fosse vestida com as roupas do sexo oposto para ser fotografada e assim recompor o duplo faltante.

O que me interessa sublinhar nas montagens fotográficas nigerianas é que elas não restabelecem apenas a memória familiar, mas reativam a potência do duplo. Por isso são capazes de gerar tantos benefícios quanto a fotografia de autênticos gêmeos.  Quando Stephen Sprague – pioneiro na pesquisa da fotografia africana – pediu que a pequena Taiwo ostentasse o Ibeji que sua mãe fez com duas cópias do mesmo retrato, colocou-nos frente a frente com o mistério e a potência da fotografia. Potência sempre em vias de se perder, sempre em vias de se banalizar. A mesma potência que Gondim buscava evocar com seu pequeno altar fotográfico dedicado a Cosme e Damião.

 

A série que hoje começo a publicar, no Icônica, será dedicada aos Duplos Fotográficos, pois estou convencido que toda a vez que uma fotografia procura o duplo, coloca perguntas sobre si mesma, sobre os significados que engendra e sobre as relações sociais das quais participa.

A importância dos duplos nunca foi tão clara quanto agora, quando as fotografias deixaram de tomar banho.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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