Depositamos sobre a fotografia uma confiança exagerada. Como resposta, muitas teorias se voltaram contra antigos conceitos que pareciam impedir uma visão mais crítica sobre o meio. Mas, afirmada tal consciência sobre os limites da fotografia, é possível fazer as pazes com um vocabulário que, usado de modo mais preciso, pode nos ser novamente úteis. No primeiro post dessa série, tentamos resgatar as noções de “realidade”, “representação da realidade” e “realismo”. Para os que chegaram agora, fica o convite. Desta vez, recolocamos outros quatro conceitos: analogia, mimesis, verossimilhança e objetividade.

Dr. Rodman, Cirurgia, Filadelfia, 1863
Analogia: a fotografia é análoga ao real? Analogia pode ser entendida como semelhança ou comparação. No campo de uma Semiologia, os teóricos já brigavam nos anos 70 para decidir se a fotografia e o cinema produziam ou não analogia com a realidade. A questão também era tomada de modo polarizado: essas imagens são idênticas ou totalmente diferentes daquelas que vemos com os olhos? Ora, quando se diz que algo é semelhante, isso já implica reconhecer alguma distinção entre o que está sendo comparado. Um desses semiólgos, Cristian Metz, num artigo de 1970 (“Além da Analogia”), já nos convidava a resolver a questão em termos mais sutis, pensando em diferentes “graus de analogia” que a imagem poderia manter com um objetos, mas convidando a perceber outras formas de referência que não passam apenas pela semelhança, mas que convivem com ela: conceitos, por exemplo, não tem forma física e não são imitáveis, mas podem ser representados pela imagem. Os adeptos da semiótica peirceana, fortes no Brasil, também denunciaram o caráter convencional da fotografia, desbancando sua pretensão analógica. Hoje, está mais do que claro que, em termos pragmáticos, um signo pode ser icônico (produzir semelhança com o objeto), indicial (ter conexão física com o objeto) e simbólico (relacionado ao objeto por uma convenção) ao mesmo tempo. Isso já bastaria para que o problema fosse colocado com menos radicalidades. Mas a questão poderia ter se resolvido com um breve olhar sobre os clássicos. Aristóteles usa o termo “analogon” no sentido matemático euclidiano, como sinônimo de proporção, para explicar o funcionamento da metáfora: se A está para B, como C está para D, A pode ser substituído por C numa sentença poética. No exemplo dele: “a taça é para Dionísio o que o escudo é para Ares, assim o poeta dirá da taça que é o escudo de Dionísio” (Poética, XXI). Ou seja, dizer que A é análogo (proporcional) a C é bem diferente de dizer que A é igual a C. A metáfora exige semelhança, mas exige também diferença entre as partes envolvidas. Ela simplesmente não funciona com sinônimos: “a fé é uma rocha” é uma metáfora, “a pedra é uma rocha” jamais será. Mas voltando ao nosso território, é Barthes quem deixa os espíritos armados, quando diz que a fotografia é um “análogon perfeito”, num texto de 1961. Dito assim, fica difícil defender. Poderíamos imaginar que, sendo Barthes um profundo conhecedor de Aristóteles, ele quis apenas falar de um alto poder metafórico da fotografia. Não é preciso forçar a barra. O que cabe lembrar em sua defesa é que, em “A câmara clara”, ele permanece um “realista” (ver verbete no post anterior), não abre mão da força de presença da realidade, mas coloca a questão com muito muito mais cuidado (e poesia). Outro autor mais jovem e pouco lido entre nós, Jean-Marie Schaeffer (de “A imagem precária”), também volta a defender com muita clareza que a analogia ainda é, em termos pragmáticos, o que melhor define nossa relação com as fotografias. Como ele diz, não uma analogia entre a fotografia e a realidade em si, que é muito mais complexa, mas entre a fotografia e uma certa forma de perceber visualmente essa realidade. Enfim, o que vale resguardar é que ser análogo nada tem a ver com ser idêntico.
Mimesis / Verossimilhança: a fotografia é mimética? Mimesis e verossimilhança precisam ser discutidas juntas. Traduzindo literalmente, mimesis quer dizer imitação. Já quanto à verossimilhança, ficamos tentados a entender como “semelhança com a verdade”, mas isso é totalmente insuficiente. De novo, a Poética de Aristóteles… Para ele, arte (techné) é imitação (mimemis), mas num sentido peculiar. Ele diz: “está claro (…) que a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que poderiam acontecer, possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (Poética, IX). Isso quer dizer que, quando o poeta produz a mimesis não repete uma ação, constrói uma ação potencial respeitando certas exigências. Verossimilhança é uma das condições de existência dessa imitação poética. Umexemplo: quando o Hulk fica forte e verde, estamos diante de algo verossímil? Se a história está bem contada, sem dúvida. Não porque na nossa natureza existam pessoas assim, mas porque essa ação é coerente com a natureza intrínseca à narrativa. Ou seja, se a história cria condições para que isso aconteça, é verossímil. Alguns saltos dos filmes de kung-fu podem não ser verossímeis, mas o verde do Hulk sim. Então, verossimilhança é uma qualidade da obra inventiva que, sem repetir, sem reproduzir a natureza cotidiana, constrói uma outra tão coerente quanto ela. Sendo assim, vejam que interessante: a mais radical das “fotografias construídas” pode ser perfeitamente verossímil, porque mostra com coerência o mundo que inventa.
Objetividade: se por objetividade entendemos a possibilidade de eliminar de toda subjetividade, então, ela não existe em nossas relações com as coisas. Portanto, não existe na fotografia. Até é possível o exercício de resgatar sutilezas. Quando a ciência fala em conhecer algo, supõe existir um sujeito desse conhecimento, eu, e um objeto, aquilo a que o conhecimento visa. O resultado desse processo tem algo de subjetivo, porque está determinado por predisposições minhas (gostos, valores culturais, morais etc.). Mas se aceitamos o fato de que o objeto manifesta algo de si, se determina em parte esse conhecimento, poderíamos bem falar num “certo grau de objetividade”. No meu Dicionário de Filosofia (Nicola Abbagnano), talvez para evitar problemas com a tão desgastada noção de objetividade, esse reconhecimento da existência do objeto aparece denominada como “objetivismo”. Peirce, por exemplo, reconhece perfeitamente a possibilidade de uma determinação do objeto representado sobre o signo, sobretudo (não apenas mas) naquele tipo que define como “índice”, que é fisicamente afetado pelo objeto. Mas temos que admitir que foi necessário bombardear a ideia de objetividade seja para reivindicar maior consciência sobre os valores culturais e estéticos implicados em toda representação (como a fotografia), seja para construir uma crítica às pretensões da ciência positivista. O problema é que, para derrubar a crença nessa objetividade, caímos às vezes numa espécie de culto egocêntrico à subjetividade, em que as justificativas para todas as coisas se esgotam no sujeito (aquela história do “cada um é cada um”, “cada um com seu cada qual”, “vai da pessoa”…). Isso tem sido chamado de relativismo e, para alguns filósofos (L. F. Pondé), é o grande problema desta virada de milênio. Quando somos convidados a interpretar uma obra de arte, sabendo que não há objetividade, ficamos sempre tentados a dizer: “é subjetivo!”. Essa é a melhor forma de fugir da discussão, de não dizer coisa alguma. Falamos isso como se todo sentido da obra viesse de dentro de nós, como se não houvesse um autor, uma técnica, uma cultura fora de nós articulando também a matéria e os sentidos. Se cada um pudesse ver o que quisesse onde quisesse, não precisariamos mais ir ao museu, poderíamos olhar para a parede branca nosso quarto e ver Klee, Chagal, Robert Frank ou Mario Cravo Neto… Se recusamos a ideia de objetividade, melhor seria então visar uma “intersubjetividade”, algo que é humano, cultural, nada objetivo, mas que não inviabiliza o diálogo com algo fora do indivíduo. Afinal, a “comunicação” existe porque temos coisas em “comum”, porque os sentidos produzidos podem ser negociados, podem ser “coletivos”. Então, uma imagem não diz uma mesma coisa para todo mundo, mas o que diz pode ser interpretado, debatido e transmitido, senão com consenso, pelo menos com uma coerência compartilhável.
Num post futuro, e para encerrar a série, eu ainda gostaria de discutir o conceito de “virtual”. Ao contrário dos que foram apresentados até aqui, esse conceito tem sido alvo de forte tietagem, o que pode ser igualmente mutilante.
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