Sabemos que, desde sua invenção, recaiu sobre a fotografia uma confiança exagerada. A ideia de que ali havia uma reprodução fiel da realidade garantiu sua imediata aceitação como instrumento de memória e documentação, no entanto, atrapalhou seu reconhecimento como arte. Nos últimos 30, talvez 40 anos, muitas teorias se empenharam em desconstruir essa confiança, denunciando as bases ingênuas que legitimavam muitos dos usos da fotografia. Para combater um século de pensamento enviesado e garantir uma postura mais crítica diante do meio, foi preciso afirmar a ideia de que a fotografia é artifício, é codificada, construída, subjetiva, ideológica, eventualmente mentirosa. Em contrapartida foi necessário policiar o uso de certas palavras e expressões emblemáticas dessa confiança cega e ultrapassada: real, realidade, objetividade, documento, analogia, mimesis, verossimilhança se tornaram heresias, e tal vocabulário só podia ser requisitado para caracterizar o inimigo que se combatia.
Pois bem, uma vez que o corretivo foi bem aplicado, que estamos conscientes dos limites da representação fotográfica, podemos tentar reconhecer nesse inimigo esfacelado alguns valores que merecem ser preservados. Para ser mais claro, vale revisitar esses conceitos renegados, vale entender suas sutilezas e fazer também deles instrumento da consciência que reivindicamos.
Para aqueles que têm paciência para a teoria, algumas tentativas de resgate:
Realidade: Existe essa coisa? Se estamos falando da natureza física, percebida empiricamente, pode não ser algo unânime. Para uma filosofia idealista dogmática, como a do filósofo irlandês George Berkeley, é problemático afirmar que existe mesmo um mundo fora do pensamento. Deixado de lado esse radicalismo, vou então admitir, por exemplo, que você é real, que está aí sentado lendo meu post, e que não existe apenas no meu pensamento. A segunda questão é saber se é possível a uma consciência acessar diretamente essa realidade, ou apenas uma representação dela. Isso merece ser discutido, sem a necessidade de radicalismos. Charles Sanders Peirce admite que toda nossa relação com o mundo está mediada por signos, mas assume também que existe uma realidade fora do signo, que também participa do processo de representação (semiose). Ou seja, existe seu nome, sua foto, suas poses, seu jeito de se vestir, seus discursos, e eu só posso alcançá-lo por meio de signos como esses. Mas você também tem uma existência para além dessas representações e essa realidade determina em maior ou menor grau os signos que o representam. Por isso, a ideia de representação não precisa ser pensada como um avesso da realidade. Podemos ir mais longe. Se a “natureza humana” é essencialmente simbólica (isto é, para nós as coisas nunca são puras, nunca são apenas elas próprias, sempre representam algo), podemos admitir que aquilo que representamos é uma parte constituinte de nossa realidade, uma realidade psíquica, social, cultural.
Representação da realidade: A fotografia representa a realidade? Estupidez! Heresia!!! Quem ainda afirmaria uma coisa dessas? Bem, já admitimos que existe algo que podemos chamar de realidade. O que é representar? É apontar para algo, fazer referência, partir de uma relação entre duas coisas, tomando uma delas para fazer pensar na outra. Basta qualquer definição razoável de “representação” para saber que ela não se confunde com “duplicação”, “reprodução fiel”, com “ser idêntico”. Afinal, seu nome o representa, o desenho que seu filho de quatro anos fez de você o representa, aquele perfume que você usa sempre o representa, até o numero do seu PIS que você nunca decorou o representa, e nada disso se confunde com a totalidade do que você é. Até mesmo uma imagem distorcida, uma informação fragmentada ou uma mentira também são representações, pelo simples fato de que fazem referência a um objeto. Ou seja, quando se diz que a fotografia representa a realidade, isso já equivale dizer que ela não é a realidade. É apenas uma representação da realidade: em certas condições, para certos fins, e sempre provisoriamente, ela se coloca no lugar de alguns de seus aspectos.
Realismo: a fotografia é realista? Ela pode ser, e pode não ser. Realismo e realidade não são a mesma coisa. O realismo é um modo de se portar diante da realidade. Admitir que existe uma realidade fora do pensamento e atribuir a ela alguma relevância para o conhecimento já é o suficiente para uma filosofia ser caracterizada como realista. Na história da arte, encontramos movimentos denominados realistas que se referem ao desejo de produzir uma arte comprometida com a vida social, com as possibilidades de conhecê-la e de transformá-la. Esse é o caso da pintura realista de Courbet ou da literatura realista de Balzac, no século XIX. E, no século XX, é o caso do cinema neo-realista italiano de diretores como Vittorio de Sica ou Rosselini. No caso da fotografia, entra em jogo uma questão herdada da pintura renascentista, que diz respeito ao desejo de extrair da própria natureza os critérios para representá-la. A perspectiva, baseada na mesma matemática que explicava tão bem o mundo, parecia então produzir uma imagem realista. Assim como a câmera: objeto técnico que supostamente apreende um comportamento natural da luz para produzir também uma imagem realista. Aqui sim existe algo de problemático que valeu a pena questionar. Mas hoje está suficientemente claro para todos que o realismo não é mais que um conjunto de procedimentos escolhidos dentre outros possíveis, e devidamente legitimados pela tradição. Quando utilizados, produz para a cultura que elegeu tais procedimentos uma comunicação compreensível sobre a realidade. Ser realista é, portanto, produzir uma imagem segundo um modelo considerado válido. Nesse sentido, podemos bem dizer que a pintura de Salvador Dali é realista, porque constrói todo tipo de fantasia, mas respeita os artifícios de convencimento adotados pela tradição da pintura ilusionista. É certo que a fotografia seguiu nas últimas décadas uma postura anti-realista, em vários sentidos. De um lado, essa fotografia se mostra pouco interessada pela realidade, priorizando uma discussão sobre o próprio meio, sobre aquilo que a própria fotografia é capaz de forjar. De outro, ela recusa e desconstrói deliberadamente esses modelos tradicionais, inclusive – e sobretudo – aqueles programados na câmera. Esse é um movimento legítimo da fotografia contemporânea. Mas é equivocado pensar a imagem realista como o contrário da imagem ficcional. Todas as aplicações do termo pela arte nos levam a concluir que o realismo é um certo modo de se portar da ficção, da imagem ilusionista. Como eu disse em outra ocasião, cabe à ficção ser realista, não à realidade. Podemos dizer que uma fotografia é realista porque localizamos certas expectativas da imagem perante a realidade. Mas só é possível pensar a relação entre duas coisas quando elas não se confundem. Ou seja, ao dizer que a imagem é realista, já fizemos a devida distinção entre a fotografia e a realidade.
Em posts futuros, podemos tentar resgatar outras vítimas, conceitos como documento, analogia, mimesis, objetividade, verossimilhança…
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