A fotografia segundo Jesus Cristo

[07.set.2010]

Nesse fim de semana, tivemos o Intercom em Caixas do Sul. Houve algumas ausências,  como Fernando de Tacca, Cláudia Linhares e meu parceiro Rubens Fernandes Junior. Em compensação, chegaram novos integrantes, como Eduardo Queiroga e Lívia Aquino. O trabalho que apresentei nasceu de um post para o Icônica, que nunca foi publicado porque ficou grande (e talvez estranho) demais. Aí vai um resumo:

Acheiropoiesis: sobrevivência do valor de culto na imagem técnica

O cristianismo passou séculos discutindo se era ou não legítimo representar Deus por meio da imagem. Dentre toda a arte que produziu, um tipo de imagem-relíquia parecia mais competente do que as outras para essa tarefa, aquela que foi chamada de “acheiropoietos” (ou “achiropita”, numa grafia italiana). Literalmente, essa palavra grega se refere a uma imagem que não foi feita pela mão do homem (a=não; kheir=mão; poiesis=fazer). Ou seja, trata-se a uma representação que supostamente emana de Deus, impregnada de sua própria substância.

Representação do rei Abgar recebendo um acheiropoietos de Cristo, pintura do séc. X.

Representação do rei Abgar recebendo um acheiropoietos de Cristo, pintura do séc. X.

Algumas lendas cristãs apontam para essa situação: até desaparecer no final do século XVIII, cultuava-se na Europa uma imagem que Cristo teria feito aparecer num tecido para ser enviada ao Rei Abgar de Edessa, já que seu brilho ofuscava a visão do pintor que deveria retratá-lo; pelo menos duas imagens na Itália (uma no Vaticano e outra em Manoppello) são reivindicadas por alguns de seus devotos com sendo o pano que Verônica usou para enxugar o rosto de Cristo no Calvário (há a hipótese de que o nome Verônica seja oriundo de “Vero Icon”: verdadeira imagem); por fim, uma das mais comoventes relíquias do cristianimso, o Sudário de Turim, mortalha que teria envolvido Cristo em seu sepultamento, cuja imagem teria sido revelada com mais clareza, graças a uma fotografia do século XIX.

Não é difícil intuir a ligação entre a fotografia e esse tipo de imagem sagrada, pois há uma grande proximidade entre o que os teólogos medievais chamavam de “imagem consubstancial” e o que nossa semiótica contemporânea chama de “índice”. Barthes foi provavelmente o primeiro a explicitar essa relação:

“A fotografia sempre me espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez esse espanto, essa teimosia, mergulhe na substância religiosa de que sou forjado; nada a fazer: a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição: não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário, isto é, que ela não é feita pela mão do homem, acheiropoietos?” (A câmara clara).

Com inspiração em Barthes, um pequeno e denso texto de Georges Didi-Huberman, “O índice da chaga ausente. Monografia de uma mancha” (L’image ouverte), retoma a ligação entre o Sudário e a fotografia. A partir de Barthes e Didi-Huberman, Philippe Dubois também se aproxima desse tema no ensaio “O corpo e seus Fantasmas”(O ato fotográfico).

É claro que pensar a fotografia como “imagem não feita pela mão do homem” significa retomar um equívoco propagado desde o século XIX. Não é preciso voltar a isso. A questão que coloco é: quando buscamos sentir na fotografia a presença de uma “substância” emanada do objeto representado, não repetimos as mesmas expectativas que os cristãos depositam no acheiropoietos? Em outras palavras, será que não sobrevivem nos rituais que praticamos diante das imagens técnicas resíduos de um olhar místico aparentemente sepultado pela modernidade?

O que buscamos não é tanto um “significado” presente na fotografia, mas aquilo que Didi-Huberman chamou de “sintoma”, uma fissura que surge na imagem e que escapa às determinações culturais que normalmente o historiador da arte busca. No final das contas, alguns gestos são reafirmados pela própria ação que visava negá-los: com todas as rupturas trazidas pelo Renascimento, a perspectiva ainda traz para a pintura as expectativas de que a natureza ofereça um método para sua própria representação. Ou seja, o que se deseja ainda é uma imagem espontânea, e a fotografia (o “Lápis da Natureza”) é o ápice dessa busca, uma espécie de acheiropoiesis racionalizada.

Esse resíduo místico na fotografia sugere a sobrevivência de um valor de culto exatamente nessa imagem que, conforme Benjamin, parecia superá-lo. Mas é ele próprio quem nos fala da resistência da uma “aura” na fotografia, sobretudo em certos retratos, cujo caráter mágico nem mesmo a pintura é capaz de superar.

O Sudário de Turim é um lugar de encontro de uma potência religioso e uma potência científica. Mesmo para os mais devotos, as manchas trazidas por esse tecido nunca mostraram exatamente uma figuração de Cristo. Foi preciso aguardar que ele fosse fotografado por Secondo Pia, em 1898, para que se pudesse ver no negativo a imagem que hoje conhecemos do corpo de Cristo. Trata-se de uma dupla revelação, no sentido religioso e técnico ao mesmo tempo.

Negativo fotográfico do Sudário de Turim (1898), e autorretrato de Secondo Pia (1890).

Negativo fotográfico do Sudário de Turim (1898), e autorretrato de Secondo Pia (1890).

Nada disso explica o que é a fotografia. Mas talvez ajude a entender o desejo de “ressurreição” que ainda depositamos em algumas imagens que mobilizam nossos afetos.

***

Em breve, devo publicar o texto completo na forma de artigo. Mas os trabalhos apresentados no Intercom 2010 podem ser encontrados no site do evento.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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