Manual de primeiros socorros para conceitos mutilados – Parte III

[03.nov.2010]

Cena de Metrópolis, de Fritz Lang, 1927.

Cena de Metrópolis, de Fritz Lang, 1927.

É natural que idéias sejam deturpadas por quem as menospreza, mas o conceito de virtual foi às vezes mutilado pelo fogo amigo: é o fato de estar na moda que dificulta sua compreensão.

Este é o último de uma série de três posts. No primeiro, discuti os conceitos de realidade, representação da realidade e realismo, no segundo, analogia, mimesis, verossimilhança e objetividade.

Virtual

Temos chamado de virtual tudo aquilo que está associado às novas tecnologias, sobretudo às redes. Construímos assim a impressão de que esta palavra surge para dar conta de uma novidade. Mas é preciso saber que estamos diante de uma noção que é, pelo menos, uns vinte e cinco séculos mais velha que os computadores.

No campo da fotografia, temos chamado de virtual a realidade inventada pelos artistas, em oposição àquela realidade que a câmera encontra ordinariamente e que os fotógrafos documentaristas se esforçam por reproduzir. Aqui, realidade virtual se torna o viés criativo e bem intensionado do que poderíamos chamar simplesmente de falsa realidade.

Mas virtual não é aquilo que se opõe ao real, é uma dimensão da realidade. A metafísica sempre se interrogou sobre o “ser” das coisas (aquilo que chamamos corriqueiramente de essência). Nessa perspectiva, Aristóteles dizia que esse ser pode existir em “ato”, aquilo que já está manifesto (que é “atual”), ou pode existir em “potência”, aquilo que tem a capacidade de “vir a ser” (Metafísica, livro V). Virtual é essa dimensão potencial e disponível da existência, que já está inscrita no ser como possibilidade, que pode ser intuída, mas que ainda não se tornou presente. Por exemplo, um negativo fotográfico exposto e ainda não revelado é virtualmente uma imagem, as ações da bolsa são virtualmente dinheiro, ou uma semente é virtualmente uma árvore (este último exemplo é de Pierre Lévy).

Sugere-se aí a possibilidade de compreender o devir, portanto, de projetar o conhecimento para uma temporalidade mais complexa, que considera o movimento das coisas.

Aristóteles gostava da arte exatamente porque enxergava nela essa competência de abordar o mundo em suas potencialidades. Ao contrário do historiador, que narra o acontecido, o poeta narra o que poderia acontecer (Poética, cap. IX).

Novas tecnologias

Para mim, as discussões sobre tecnologia não são as mais empolgantes. Podemos passar rapidamente por elas, já assumindo que o que mais interessa virá no próximo tópico.

Tudo o que está no computador ou na internet é virtual em certo sentido. Não existe ali uma imagem, um texto, uma música, pelo menos, não o tempo todo. Existem apenas dados, mas que são potencialmente imagem, texto, música, ou seja, que estão disponíveis para serem “atualizados” nessas formas. Mais ou menos como a “imagem virtual” que existe no negativo não revelado mas, enquanto a revelação é um processo definitivo, a imagem digital permanece sendo essencialmente dados, e sua atualização numa manifestação visível é sempre provisória.

Num sentido mais complexo, podemos dizer que as imagens de síntese numérica, isto é, geradas diretamente no computador, produzem realidades virtuais. Elas não são cópias de um fato ocorrido, são encenações “modeladas” a partir de conceitos abstraídos da realidade. Não são simplesmente ficções, pois ainda podem corresponder às potencialidades do real. Sem dúvida, elas estão aptas a simular também realidades impossíveis mas, uma vez que responde a um modelo, a imagem não deixa de mostrar potenciais coerentes com as condições estabelecidas. Se não reproduz uma natureza idêntica à nossa, constrói uma natureza com uma coerência similar. A realidade virtual construída por meio de simulação não prova nada, nem prevê nada, apenas diz que, dadas tais condições, tais coisas poderiam acontecer. Por isso mesmo, ainda tem valor de conhecimento em certos conhecimentos. Mas cabe dizer que isso não é exclusividade das experiências mediadas pelas novas tecnologias. Sem dúvida, isso é válido para a simulação de um terremoto calculada por um super computador, mas também para a tradicional simulação de incêndio feita num edifício.

Não vou entrar nesse assunto mas, há alguns meses, publiquei no blog de um amigo um artigo sobre a “virtualização das identidades” nas redes sociais.

Fotografia

Com novas ou velhas tecnologias, a questão do virtual tem atravessado muitas discussões sobre a fotografia. Isso está claramente colocado em duas diferentes perspectivas (e talvez em mais uma terceira, que apresento como pura especulação):

1. A fotografia contemorânea investe muitas vezes na encenação como forma de romper com a tradição documental, de desvincular a imagem de um instante dado no passado, o “isso foi” de Barthes, para fazê-la apontar para um tempo indefinido, que é o das potencialidades. Como já disse no começo deste post, aqui estamos diante do virtual. Mas é abusivo confundir simplesmente virtual com ficcional, sobretudo se tomarmos o ficcional como o avesso do real (esta última, noção que a fotografia contemporânea também renega). Faz sentido falar em virtual se reconhecemos na ficção o exercício de um entendimento que se descola dos fatos observados para operar no plano dos conceitos e, a partir deles, testar as possibilidades de reconfiguração dessa realidade.

Cindy Sherman, 1977.

Cindy Sherman, 1977.

Assim é, por exemplo, uma personagem de Cindy Sherman. Podemos reconhecer nela a representação de algo virtual não porque não exista. Ao contrário, é virtual porque, mesmo como invenção, mesmo sem se referir à pessoa que esteve diante da câmera, expõe um modelo de mulher que pode ser identificada com alguém próximo, alguém distante, alguém possível, talvez, consigo mesma…

A chamada “fotografia construída” teve o mérito de expor as possibilidades de diálogo da imagem fotográfica com essa dimensão virtual. Mas, talvez por esse esfoço pioneiro, creio que às vezes tenha feito isso com certo didatismo.

2. Autores como Vilém Flusser e Arlindo Machado nos lembram que a fotografia não lida diretamente com o real, ela o transforma segundo códigos ou modelos conceituais forjados pela cultura. Desse modo, a imagem representa o mundo segundo um universo de possibilidades previstas nesses códigos. Para simplificar essa idéia: uma pessoa diante da câmera sempre flexibiliza sua identidade para encenar um personagem, aquele que é possível de ser captado pela câmera, aquele que nos esforçamos para construir quando queremos ser fotogênicos, aquele que os rituais sociais exigem (o casamento, a formatura, mas também a guerra, a catástrofe…). Enfim, quando vemos uma foto, acreditamos estar diante de “fulano”. Mas, em boa medida, o que a imagem nos dá aver é um modelo: um trabalhador, um pai, uma noiva, um burguês, um índio, uma vítima… Mesmo uma fotografia documental sempre terá algo de virtual, na medida em que não aponta apenas para o instante do passado, isto é, a pessoa ou o fato que foi resgistrado, mas para uma situação abstrata na qual projetamos uma grande amplitude de fenômenos.

Joachim Schmid, Photogenetic Drafts, 1991.

Joachim Schmid, Photogenetic Drafts, 1991.

Essa idéia aparece às vezes no trabalho de muitos artistas com certa ironia, ou em tom de denúncia. Quando Joachim Schmid picota retratos e sobrepõe uns aos outros, ele demonstra que o que temos ali não não é uma pessoa singular, é apenas uma pose, uma conduta diante da câmera, que se repete em lugares e tempos distintos. Sua conclusão, alardeada de modo quase performático, é a de que não precisamos mais fotografar, pois o retrato que alguém faria de mim certamente já foi feito milhares de outras vezes.

Dorothe Lange, Migrant Mother, 1936.

Dorothea Lange, Migrant Mother, 1936.

Essa ironia funciona como uma espécie de terapia de choque para os olhares mais alienados ou resistentes, que são incapazes de enxergar os códigos que orientam a imagem fotográfica. Superado isso, podemos reconhecer nessa virtualidade um valor mesmo da fotografia documental. Um exemplo: eu não me comovo muito com a depressão norte-americana que sucedeu a crise de 1929. Mas reconheço na imagem de Dorothea Lange o sofrimento de uma mãe, potencialmente a minha, a sua, qualquer mãe que não pudesse resgatar seus filhos de uma situação de indignade. A força da fotografia documental é de falar de alguém que esteve diante da câmera ao mesmo tempo em que fala de todos nós, em outras palavras, de construir com fragmentos do passado alegorias sobre o futuro. Mesmo Barthes, acusado de limitar a fotografia ao “isso foi”, parecia ter compreendido isso, por exemplo, quando diz sobre Lewis Payne, condenado a morte: “ele está morto e vai morrer”. Trata-se de alguém que que já morreu e que pouco deve importar a Barthes, mas trata-se também da iminência da morte, angústia que atormenta qualquer ser humano.

Essa virtualidade não está apenas nas imagens dos grandes mestres. Quantas vezes, diante de uma fotografia anônima que encontramos perdida em algum lugar, não ficamos tentados a desdobrar aquele instante que a imagem nos mostra, projetando sobre seus personagens histórias que, no final das contas, são sempre as nossas.

História e virtualidade

Acabei de sugerir que mesmo a fotografia documental penetra o campo da virtualidade quando se liberta do passado que a gerou. Essa imagem nos oferece um relato aberto, enquanto a história está limitada e constrangida pelos fatos ocorridos. Essa parece ser a perspectiva de Aristóteles, quando prefere o trabalho do poeta ao do historiador.

Mas Walter Benjamin propõe uma visão muito distinta da história, avessa às abordagens que se contentam em resolver o passado estabelecendo a cronologia dos fatos, articulados num tempo homogêneo, que sempre avança numa direção necessária, a do progressso (Sobre o conceito de história).

Para ele, considerar o passado como algo resolvido é legitimar o poder que narra a história sob a perspectiva dos vencedores. É como pisar nos corpos insepultos dos vencidos, negando um sentido às suas mortes.

Ele convida então o historiador a “escovar a história a contrapelo”, a escutar nas vozes que ouvimos também “as vozes que emudeceram”, a não dar essas batalhas por encerradas, porque é o nosso futuro que está em jogo na abordagem que fazemos desse passado. Ou seja, não se trata de saber como o passado determinou o presente, mas de se perguntar sobre as potencialidades nele existentes e ainda não realizadas, pelas quais vale a pena lutar.

Há talvez aqui mais um caminho para pensar o virtual nessas imagens que servem à memória (inspirado nas leituras de Maurício Lissovsky): não é preciso à fotografia romper com a história e menos ainda com a realidade para encontrar nela uma virtualidade. Porque o passado para o qual a imagem aponta permanece pulsante, colocando em causa nosso próprio devir. É por isso que, nas palavras de Benjamin, “o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos” (Pequena história da fotografia).

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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