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A DEFINIÇÃO DO ACASO

Ronaldo Entler, 1997

 

A complexidade do conceito de acaso já pode ser deduzida da quantidade de palavras que surgem em nosso cotidiano e que se relacionam ou se confundem com ele: sorte, azar, coincidência, acidente, contingência, indeterminação, destino, causa fortuita, aleatoriedade.

Mas definir tais palavras não é um bom caminho para definir o acaso, pois suas relações são obscuras, elas não se complementam e nem necessariamente se assemelham. Não são categorias de acaso: não podemos dizer que há acasos do tipo azar, do tipo coincidência, acidente..., pois são definições que partem de bases distintas. Esses termos podem às vezes cumprir o papel de sinônimo do acaso sem necessariamente serem sinônimas entre si. Ao contrário, podem ser antônimas, como o sentido recorrente de sorte e azar que temos na língua portuguesa.  E alguns deles, ora afirmam, ora negam o acaso. Quando se diz que alguma coisa é obra do destino, pode-se estar querendo dizer que é produto de um jogo de forças imprevisíveis da natureza, de cruzamentos não necessários, acidentais. Uma afirmação do acaso. Mas pode ainda referir-se a algo que já estava escrito, previsto num roteiro minuciosamente traçado, do qual não se pode escapar. Negação do acaso.

É bastante nítido como o acaso assume com freqüência, e cada vez mais, o centro de debates da filosofia, da matemática, da física, da biologia. Mas, mesmo no interior de cada uma dessas disciplinas, estamos longe de poder observar um consenso sobre o significado desse termo.

Se buscamos uma síntese, o que todas as suas definições parecem ter em comum, algo que portanto pode lhe definir uma essência, é o fato de que o acaso é sempre denominado a partir da impossibilidade de localizar as determinações de um fenômeno. Daí, outros fatores decorrem: a imprevisibilidade desse fenômeno, a falta de controle sobre ele etc. Mas quando as várias disciplinas que abordam o acaso, ou ainda, quando nosso julgamento cotidiano afirma essa impossibilidade de localização das determinações, pode-se estar afirmando coisas distintas sobre o processo fenomenológico: as causas do fenômeno são desconhecidas, as causas do fenômeno são desconexas, ou o fenômeno não possui causa. 

Estas três situações sintetizam não propriamente classes distintas de fenômenos, mas três fenomenologias, três posições epistemológicas, se se quiser, pois veremos que dizem respeito à legitimidade do conhecimento que se pode ter sobre tal fenômeno que se chama de acaso.

ACASO COMO DESCONHECIMENTO DAS CAUSAS

Existe um princípio básico da filosofia que, em geral, não temos muita dificuldade para intuir, que é o de que todo efeito tem uma causa. E se algo imprevisto ocorre, posso denominar o acaso sem que isso signifique que o fenômeno escapou às determinações que regem o universo. Aqui, o acaso diz respeito a um lapso do conhecimento e não da natureza, como diz o matemático Émille Borel, “o acaso é apenas o nome dado a nossa ignorância” 1.

Se jogo uma moeda para o alto, não posso prever o lado em que ela irá cair porque não é possível localizar o conjunto de forças que agem sobre ela. No entanto, podemos afirmar que sua posição final tem um causa.

Um programa de computador pode sortear números ou, se quisermos, significados atribuídos a esses números. É o que chamamos de função randômica. Mas um computador, em princípio, não deve errar, não deve ter “jogo”  em seu funcionamento. Então, o que é o acaso para ele? É um cálculo complexo que produz resultados variados e cujas operações nós não podemos acompanhar, mesmo ao longo de um grande número de sorteios. Por exemplo, o programa define alguns números consultando no sistema informações como dia, mês, ano, hora, e outros dados particulares da configuração atual desse sistema. Depois realiza uma série de operações com esses números numa fração de segundo, até deduzir o resultado final daquilo que entenderemos como um sorteio.

Para o computador a operação é absolutamente determinada: bastaria repetir o mesmo cálculo para obter o mesmo resultado, se o programa fosse feito de forma a permitir isso. Mas para o usuário, o número resultante é casual, porque ele não tem acesso à sua lógica de construção.

Este é também o acaso possível dentro de visões que supõe uma inteligência superior, um deus, que coordene todos os fenômenos do Universo pois, como sugeriu Einstein, “Deus não joga dados”. Ou ainda, esse é o significado do acaso dentro de uma concepção de universo perfeitamente auto-coordenado, como um grande e único motor, onde todos os fenômenos estão engrenados, ainda que estejam distantes no tempo e no espaço. Se pensamos assim, o que é o acaso de uma moeda caindo do lado cara, em vez de coroa? É um fato necessário dentro desse Universo engrenado. Portanto, acaso para nós, mas não para uma inteligência que pudesse realmente compreender o Universo.

Levando essa idéia ao limite, os cientistas partidários de uma visão determinista sonhavam com a possibilidade de predição de todos os fenômenos. O físico e matemático francês Laplace (1749-1827), figura emblemática do determinismo, afirmava que uma inteligência superior que pudesse conhecer a posição de todos os corpos e todas as forças que atuam no universo num determinado momento, poderia prever a posição desses corpos em qualquer momento sugerido, do passado ou do futuro. Existe aqui a idéia de um grande encadeamento: o estado do universo no passado determina seu estado no presente que, por sua vez, determinará seu estado no futuro. O conhecimento de um desses estados permitiria ao cientista tanto avançar quanto retroceder no tempo. 

Esta definição contém, na verdade, uma negação potencial do próprio acaso, e é exatamente isso que esse ciência determinista irá buscar. Se ocorre o acaso, o cientista poderá tentar ampliar sua observação, localizando a força até então negligenciada que atuou sobre o corpo. Se for relevante, isto é, se essa força tende a reaparecer, ela deverá ter lugar em sua equação para que sua ação possa ser calculada. Mas ele pode ainda considerá-la simplesmente como um lapso do processo experimental, dado irrelevante já que, para ele, não existem lapsos na natureza. Nesse caso ele repetirá a experiência, desta vez, cuidando para que a situação ideal se cumpra. 

ACASO COMO CRUZAMENTO DE SÉRIES CAUSAIS INDEPENDENTES

Uma série causal é a cadeia de causas e efeitos interligadaos: um fenômeno determina um outro, que determina um outro..., e juntos eles constituem uma série causal. Dentro dela, pode-se localizar as razões da existência de cada fenômeno, isto é, podemos dizer que cada fenômeno é “necessário”. Duas séries são independentes uma da outra quando falta um elo de determinação entre os fenômenos que compõem cada uma delas: hoje tem eclipse da lua, e furou o pneu do meu carro; são fenômenos desconexos. Ou seja, não se pode observar numa série nada que possa ter determinado uma ação sobre a outra. No entanto, elas podem se cruzar no tempo e no espaço, determinando em conjunto um novo fato. Esta noção de acaso foi elaborada pelo matemático Antoine Augustin Cournot.

Ele próprio traz uma ilustração que se tornou bastante célebre:

“Uma telha cai do telhado de uma casa, passando eu pela rua ou não; não há qualquer conexão, qualquer solidariedade, qualquer dependência entre as causas que levam à queda da telha e aquelas que me fazem sair de minha casa, para levar uma carta ao correio. Mas a telha cai sobre minha cabeça, e eis este velho matemático fora de atividade: é um encontro fortuito, que ocorre por acaso” 2

Ou seja, ele pode compreender as forças que agiram sobre a telha e concluir que era necessário que ela caísse. Mas, nesse conjunto de forças, nada determinava que ela caísse exatamente sobre sua cabeça. Por sua vez, ele sabe muito bem porque saiu de casa, planejou muito bem o seu dia, e não contava com o incidente. Seu trajeto era independente do trajeto da telha, suas determinações também. Cada série explica seu movimento, mas não o cruzamento propriamente dito. 

Mas um determinista poderia questionar: porque considerar duas séries causais como isoladas se elas fazem parte de um mesmo universo. Nós não enxergamos a conexão, o que não significa dizer que ela não exista.

Sobre isso devemos considerar algumas coisas, devemos reconhecer, que não passaram despercebidas a Cournot. Em primeiro lugar, há uma questão pragmática: a consideração desse universo inteiramente coordenado pode não nos levar a lugar nenhum. Em nome dessa pretensa realidade, é preciso fantasiar uma inteligência superior, que hoje conhecemos como demônio de Laplace. Voltando ao jogo de cara ou coroa, o físico David Ruelle faz, não sem uma certa ironia, a seguinte observação sobre essa visão:

“Em que momento a moeda decide cair de um lado e não do outro? Se nos colocarmos no quadro do determinismo clássico, o estado do Universo num instante determina seu instante em qualquer instante posterior. Portanto, o lado em que cairá a moeda é determinado no momento da criação do Universo!” 3.

Se se pretende que a verdade buscada sobre o Universo seja operacional, será legitimo considerar a existência de séries independentes. 

Cournot observa ainda que não existe uma tal fórmula capaz de encompassar todos os movimentos do universo. Um exemplo disso, que Cournot obviamente não conheceu, é a incompatibilidade entre certos princípios da mecânica clássica, da mecânica quântica e da teoria da relatividade. Os cientistas estão de acordo sobre o fato de que, apesar de pontos de divergência aparentemente intransponíveis entre essas teorias, elas são perfeitamente válidas e úteis para explicar certos fenômenos em particular4.

Uma última observação, diz respeito ao livre arbítrio do homem. Na história contada por Cournot, ele tinha liberdade para decidir sair ou não de casa, seguir ou não aquele trajeto. Não parece haver nas engrenagens mecânicas desse grande motor do Universo nada que lhe obrigasse a uma atitude em particular. Essa é, aliás, uma das grandes motivações da filosofia para pensar o acaso: garantir o livre arbítrio do ser humano, diante das determinações da natureza.

Enfim, não parece existir a possibilidade de reduzir o cruzamento que define o acaso na teoria de Cournot à situação apresentada na primeira definição, a do acaso como desconhecimento das causas.

ACASO COMO AUSÊNCIA DE CAUSAS

ausência de causas parece ser o significado mais corriqueiro do acaso. Quando alguém diz que algo aconteceu por acaso, quer dizer, ainda que pouco refletidamente, que não há um porquê a ser considerado. Ainda que esta definição pareça conter o significado literal de acaso, ela corresponde também à situação mais difícil de compreender no âmbito de nossa natureza. Como pode haver um fenômeno sem causa?

Uma descrição clássica desse acaso absoluto aparece no pensamento do filósofo romano Lucrécio. Partindo do pensamento do atomista grego Demócrito, que falava de um movimento natural das partículas, um deslocamento vertical em função de seu peso, Lucrécio acrescenta a noção de clinamen, um desvio, uma inclinação de algumas partículas que permite a colisão entre elas e, daí, a formação de todos os corpos do universo. Segundo o filósofo romano, esse desvio ocorreria por uma motivação em si, ou seja por um puro acaso. Os comentadores de Lucrécio apontam razões morais para sua teoria, exatamente a necessidade de garantir a liberdade do homem, como dissemos a pouco. Mas não é tão simples traduzir sua idéia em termos da nossa compreensão usual de natureza.

O físico francês Rémy Lestienne, no livro Le hasard créateur, aponta no pensamento de uma série de teóricos esse acaso absoluto: “o acaso, por definição, recusa todo recurso a um antecedente: podem ser ditos casuais, em sentido estrito, apenas os eventos que não são determinados por nenhuma causa”5.

Esta é uma das várias definições de acaso que apresenta em seu livro, mas é nitidamente aquela que lhe interessa, e que ele defende. Segundo ele, esse acaso absoluto se manifesta com mais clareza na física quântica. A teoria quântica parte do princípio de que certos comportamentos das partículas subatômicas não podem ser medidos com precisão e, assim, adota ferramentas probabilísticas para descrevê-los. Por exemplo, não se pode medir ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula, pois a ação de medir uma dessas grandezas perturba a outra. Mas, para a física quântica, não se trata de um mera limitação dos instrumentos de medição, trata-se de um princípio físico: como se diz, essas duas grandezas não comutam, uma idéia que é bastante complicada para desenvolvermos aqui, mas em palavras um pouco grosseiras significa que elas são independentes, que a variação de uma mantém um certo grau de liberdade sobre a variação da outra, ao contrário do que a mecânica clássica. Assim, a física quântica opera com probabilidades porque o sistema em estudo tem em si uma relação indeterminada entre as grandezas que podem ser medidas. 

Como diz Lestienne:

“Um sistema quântico se determina sem razão, ou se se quer, em razão de uma ‘propensão’ interna que não aceita qualquer determinação. (...) A metafísica que sustenta a interpretação “ortodoxa “ da mecânica quântica evoca com vinte séculos de distância o clinamen de Lucrécio”6.

Mas Lestienne pondera:

“Não é necessário, em mecânica quântica, afirmar que o acaso fundamental reside nos átomos em si mesmos, mas antes, no tanto em que eles se manifestam para nós”7.  

Enfim, retornamos a sutil fronteira epistemológica, onde o acaso se define como algo absoluto, porque ele se apresenta como tal, e porque buscar a superação desse estado de indeterminação tanto não é possível em termos experimentais, quanto não é lógico em termos conceituais, no contexto da mecânica quântica. Mas ainda permanece ambíguo o sentido do termo indeterminismo aqui aplicado: trata-se simplesmente de uma oposição as pretensões do determinismo, porque as causas definitivamente não estão disponíveis, ou de uma negação da idéia de determinação, porque as causas de fato não existem? 

Vale a pena apresentar ainda uma outra noção de acaso absoluto, que ocorreria antes de uma noção de natureza e, portanto, nos permite definir o acaso fora desse “palco” onde se constrói nossa intuição cotidiana de que não existe efeito sem causa. Trata-se do pensamento de Clément Rosset, apresentado em sua obra A lógica do Pior 8. Partindo também do atomismo de Lucrécio, Rosset defende a existência de um acaso absoluto e primordial, um universo onde cada partícula é essencialmente independente, movimentando-se e chocando-se entre si sem qualquer razão, que não a do próprio acaso. Esse choque aleatório entre as partículas geraria as aparentes estabilidades que chamamos, por exemplo, de homem, de pedra, ou genericamente de natureza, situações efêmeras e provisórias dentro do caos primordial, mas que parecem estáveis dentro de uma perspectiva humana do tempo. “O reino do que existe é o reino da exceção” 9, isto é, a natureza seria um lapso desse acaso primordial, e não o contrário.

Estamos aqui no polo oposto de uma visão de mundo trazida na primeira definição de acaso. Lá, cada fenômeno estaria coordenado dentro de uma unidade absoluta, como engrenagem do grande motor do universo. Não há, nesse contexto, sentido em pensar a independência dos fenômenos. Aqui, ao contrário, toda conexão seria ilusória, a única verdade é a de uma independência absoluta dos elementos. Lá, a estabilidade, o sonho de um conhecimento total, da previsibilidade. Aqui, a impossibilidade do conhecimento, a contradição de pensar uma verdade que não pode ser afirmada, a construção de uma “não-filosofia” como diz Rosset. 

 



Notas:

1. Citado em José Rose, Le hasard au quotidien. Coïncidences, jeux au hasard, sondages, Paris, Seuil, 1993. p.118. [voltar]  
2. Cournot, Matérialisme, vitalisme et rationalisme, 1875. Citado em Rémy Lestienne, Le hasard créateur, Paris, La Découverte, 1993.  pp. 38-39. [voltar]  
3. David Ruelle, Acaso e caos, São Paulo, Editora da Unesp, 1993. p.26. [voltar]  
4. Esta idéia é afirmada em diferentes trechos do livro de David Ruelle op. cit., que faz referência à validade de uma teoria para “pedaços de realidade”. Mais particularmente, é o tema central de uma obra de John Brockman, Einstein, Gertrude Stein, Wittgenstein e Frankenstein. Reinventando o Universo (São Paulo, Companhia das Letras, 1989). Nesse livro, Brockman observa que muitas teorias científicas se apoiam numa coerência matemática interna, e a partir disso defende a idéia de que cada uma constrói sua própria realidade. [voltar]  
5. Lestienne, op. cit. p. 37. [voltar]  
6. Lestienne, op. cit. pp.184-5. [voltar]  
7. Lestienne, op. cit. p. 185. [voltar]  
8. Clément Rosset. A Lógica do Pior. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989. [voltar]  
9. Rosset, op. cit. p.126. [voltar]  

 

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