LAURA DEL REY | 10, 14, 16, 18

10, 14, 16, 18

Estes contos resultam de uma intervenção feita pela artista num conjunto de certificados de censura que definem restrições etárias impostas a filmes exibidos no Brasil, na década de 1980. As justificativas apresentadas pelos censores permitem supor uma hierarquia de riscos associados a certas temáticas como violência, erotismo, filosofia e política. Desdobrando livremente algumas referências trazidas por esses documentos, Laura constrói recortes do que poderia ser o imaginário próprio de cada uma das idades definidas para os filmes. Os textos foram mostrados na forma de uma instalação que integra a exposição Era preciso esperar para saber, em cartaz no MIS, de abril a junho de 2018.
Laura Del Rey (São Caetano, 1985) é formada em Cinema (FAAP), atua como escritora e fotógrafa. Cursou a especialização em Fotolivros da Blank Paper (Madri) e, atualmente, termina a Pós Graduação Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz e inicia o mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É editora da revista trimestral Puñado, que publica contos de autoras latino-americanas. Colabora com veículos como o site El Pulpo, o Jornal de Borda e as revistas OLD e Revera.

10

A grande parada era o Ônibus do Inferno. Eu e outros sete amigos subíamos como dava nas laterais do fretado do colégio, com os pés sobre os parachoques ou com os braços pendurados para dentro das janelas. Alguns, claro, não davam conta e caíam. Essa era a guerra. Eu mesmo caía bastante, porque não tinha perna para correr como os mais velhos. Minha tia, que via tudo quando o ônibus passava em frente à casa dela, parecia se incomodar menos com os nossos cotovelos em carne viva e com o cheiro forte das freadas do seu Décio, que tentava nos derrubar aos solavancos, do que com algumas palavras que o Teco dizia. Eu não dizia nada. Quase ninguém dizia, porque eram dezenas de tias e tios de todo mundo – mas o Teco, que tinha onze anos e nenhum parente morando na rua, dizia. Era o seu Décio virar a esquina e ele já começava: “puta que o pariu! Hoje eu sou o primeiro nessa merda!”. O Teco, com suas palavras malditas, era o rei do nosso inferno; punha a força do mundo na garganta para falar coisas que levei anos sem saber o que significavam, mas que à noite, sozinho no banheiro de casa, eu repetia nas mais diversas entonações, esbravejando com cuidado para que não me ouvissem do lado de fora da porta.

14

Um navio cargueiro com cinco mil bois havia afundado no litoral do Pará. O barco de uma companhia libanesa que transportava cinco mil bois havia tombado e afundado no cais do porto de Vila do Conde, município de Barcarena, nordeste do Pará, na manhã de terça-feira 6 de outubro de 2015, e o mundo continuava de pé. Pior: fazia sol no meu mundo (que, na época, eram onze quarteirões para cima e para baixo do prédio onde morávamos). Da varanda, eu via as britadeiras que já escutava desde bem cedo. Meus amigos cortavam janelas, cerquinhas, viadutos, hidrantes para a aula de maquetes. Eu pensava nos bois. Prendia a respiração, me imaginando um boi sozinho no rio do Pará. Bastava ser um, porque a morte é sempre de um só. Se pelo menos eu tivesse as palavras certas. Me deixava sem ar até o limite; desejava que essa massa de aflição submersa evaporasse, formando uma nuvem laranja sobre tudo o mais, nos fechando sem ar logo abaixo; fazendo o mundo inteiro virar rio. Que caísse uma chuva de lágrimas de bois afogados, uma chuva infinita que causasse todas as enchentes, para que fosse o maior engarrafamento já visto, para que as britadeiras parassem um pouco, para que se mergulhasse no silêncio dos bois.

16

Cada um tinha os seus limites: o Sandro não bebia quando cheirava, o Caio não pegava irmã de namorada, o Júlio não batia em ninguém que usasse óculos. Eu, que ainda não conhecia os meus limites, pensava não ter nenhum. Eram tantas as nossas tardes de tédio que a cabeça rodava. Os filmes, jogos, as brigas na saída do colégio, as brigas nos shows, os peitos das primas de todas as primas das nossas amigas não davam conta daquele tédio. Refém de um corpo que pedia experiências, a cabeça rodava de uma ideia ruim para outra. Em uma dessas tardes, minha irmã me tirou do sério; era a oportunidade de que eu precisava. Assim que ela saiu, liguei para os três, que levaram quase uma hora até chegar. Meu pescoço pulsava. Fechados no banheiro de visitas, eu de pé sobre o bidê, o circo foi armado: ergui o aquário da Camila bem alto e uma câmera já estava no REC. Os três gritavam e cantavam ao meu redor. Um emaranhado de sons graves azucrinava os ouvidos, enquanto eu despejava os peixes azuis na água da privada. Quando puxei a descarga, a minha visão já estava turva. Vomitei num jato, ajoelhado sem escolha pelas pernas fracas.

18

Tinha, também, o cheiro, mas era acima de tudo a maneira sincera com que ela se inflamava ao falar sobre “A pequena história da humanidade” que me inquietava. A Sandra de vinte e um anos, bermudinha jeans, blusa cheia de pelos de gato, dava esse nome a tudo o que envolvia as nossas virtudes e fraquezas de caráter – das embarcações viking, com seus lagartos esculpidos e incensários, aos testes de desodorante em animais. Tudo era politizável. Foi errando diante dela (e sendo docemente constrangida pelas palavras dela) que comecei a entender melhor. Não se tratava do troco a mais que eu deveria ter devolvido na lanchonete; eu, que nunca tinha me atraído por outra mulher, era dela. “O que você é dela?” “Dela”. Mal compreendia como o rebuliço dentro de mim poderia se tornar um gesto ou, na melhor das hipóteses, um contato com a bermudinha jeans e a pele – mas o meu corpo entendia melhor, e sempre chegava antes das frases. No dia em que fomos ao bar pela primeira vez, o rapaz que nos atendia perguntou de cara: “comanda junta ou separada?”. Os meus próximos meses vieram no embalo daquela resposta. O que eu sabia e não sabia fazer, tudo no quarto minúsculo de paredes mal pintadas.

Imagens:
  • Registro da exposição Era preciso esperar para saber, que integra o evento Maio Fotografia no MIS (abril a junho de 2018)
  • Certificado de censura do filme Gostaria que você estivesse aqui (1987). Ministério da Justiça —Departamento de Polícia Federal — Divisão de Censura de Diversões Públicas, 1988. Acervo MIS.
  • Certificado de censura do filme Stalker (1979). Ministério da Justiça —Departamento de Polícia Federal — Divisão de Censura de Diversões Públicas, 1983. Acervo MIS.
  • Certificado de censura do filme Warbus — Ônibus de guerra (1986). Ministério da Justiça —Departamento de Polícia Federal — Divisão de Censura de Diversões Públicas, 1986. Acervo MIS.
  • Certificado de censura do filme Olhos vendados (1978). Ministério da Justiça —Departamento de Polícia Federal — Divisão de Censura de Diversões Públicas, 1982. Acervo MIS.
  • Certificado de censura do filme A mulher-serpente e a flor (1983). Ministério da Justiça —Departamento de Polícia Federal — Divisão de Censura de Diversões Públicas, 1988. Acervo MIS.