Eis aqui parte do ensaio Dicionário de Favelas, que integra o livro Fotograficamente Rio – a cidade e seus temas. Uma organização da historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense, Ana Maria Mauad*. Trabalho que fiz em parceria com Mariana Lacerda**.
Em 2013, subimos o morro de Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro, acompanhados por Vitor Lira, um morador da parte mais alta do morro, do local conhecido como Pico. Vitor então líder da Comissão de Moradores do Pico do Santa Marta que se organizou para lutar pela manutenção das casas de 52 famílias daquela parte do morro que deveriam ser removidas. Seus dois filhos, quinta geração do lugar, corriam risco de vida – segundo a Prefeitura do Rio, que em laudos técnicos argumentou que as moradias do Pico ocupavam área de risco. Um laudo técnico outro, encomendando pelos moradores do Pico, contudo, mostrou o contrário.
Há poucos anos atrás, o Pico do Morro de Santa Marta era um local de difícil acesso e por isso mesmo era considerado estratégico para o combate ao tráfico de drogas. A polícia entrava pelo alto do morro e era ali também, mas poucos no morro comentam sobre isso, por onde, possivelmente, jovens presos por policiais eram levados.
A instalação do plano inclinado, construído em maio de 2008, e o asfaltamento da rua que sobe pelo bairro de Laranjeiras após a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em dezembro do mesmo ano, tornou a belíssima vista do Pico extremamente acessível. O lugar antes longe e alto tornou-se perto. Tributos referentes ao consumo de água e energia passaram a chegar aos seus moradores – e para isso ruelas ganharam nomes oficiais.
À medida que as melhorias chegavam ao morro de Santa Marta, os moradores do Pico tiveram conhecimento que suas casas seriam removidas.
Segundo a prefeitura, além de ocuparem áreas de risco, essas casas, apesar de há muito estarem ali, situam-se em uma região que indica proximidade em relação ao topo do morro. Sem negociação nem diálogo com os moradores que ali testemunharam assassinatos de parentes e nascimento de filhos, que ali, organizaram suas vidas ao longo de anos e, apesar de tudo, paredes foram marcadas com tinta frescas com siglas e números – numa espécie de seleção. Contra esse gesto, Vitor Lira foi voz gritante.
Este trabalho nasceu deste contexto e teve como prática inicial ouvir e recolher narrativas daqueles que vivem e viviam no Pico do Morro de Santa Marta, a partir do relato central de Vitor Lira. A pesquisa logo apontou para o que continuava evidente na tinta fresca das paredes das casas em alvenaria: a remoção de moradores de favelas, uma prática ampliada durante a ditadura militar brasileira, persiste até os dias atuais.
A partir daí uma ideia simples nos estimulou a pensar a favela – essa forma brasileira de morar: ela existe e existirá apesar de tudo. A favela existe apesar das políticas que ao longo da história capturaram modos de existência, de ir e vir, de geração de trabalho, de produção de afetos. A favela enquanto resistência.
Partirmos, então, para a construção de um arquivo que no momento chamamos apenas Dicionário, uma forma de traçar, pontuar, guardar, registrar esses modos de viver no mundo – apesar do mundo.
P de Pico do Morro de Santa Marta
Em um pedaço de terra, na cidade do Rio de Janeiro, construído no ar, na vertente sul do Maciço da Tijuca, no setor conhecido como Serra da Carioca, está este lugar onde residem 52 famílias. Moram na parte mais alta do Morro de Santa Marta, cujo acesso se dá pela rua de São Clemente, bairro de Botafogo. A parte mais alta do morro, vem daí o nome Pico, flutuando apesar do chão, e que também pode ser acessada a partir de Laranjeiras.
As casas do Pico são cercadas por exuberantes árvores, que comportam-se como nebulosas, entre jequitibás, ipês, urucuramas e angicos – no que restou da Floresta da Tijuca – onde um dia já se cultivou o café. Dessa história restam as ruínas em forma de uma escadaria que leva a uma nascente de água fria e limpa. Em um canto mais afastado desse, que é um imenso jardim, o visitante pode colher mangas ou fartar-se de comer jaca. Não falta comida. Borboletas azuis, saguis e cobras costumam aparecer. Os animais, quando domesticados, passam a fazer parte da comunidade.
Há muito que ali se vive olhando o oceano e suas imensas rochas, mas até hoje não se sabe se são os moradores do Pico que miram o mar – ou se são vigiados pelos santos de suas águas. Por vezes, um halo de bruma envolve tudo. Uma aura se estabelece. Nada passa e tem-se paz.
O viajante que desejar alcançar o Pico deve fazê-lo pelo Plano Inclinado – bonde que seguindo um trilho alcança o alto. Dali em diante, o percurso deve ser feito a pé. Àquele que caminha, recomenda-se que observe as ruelas estreitas entre as casas do Pico. Olhe para baixo, atente-se ao chão – apesar do mar, do céu. O calçamento não alcançou o Pico – tornou-se privilégio para quem mora no morro, mas não daqueles que ocupam a sua parte mais íngreme onde a chuva, em muitas ocasiões, trai seus moradores.
Às vezes, registra-se a ocorrência de tempestades e há riscos de deslizamento. A morte anda por perto. Por que os projetos de urbanização de favelas do Rio de Janeiro não alcançaram o Pico? Os viajantes devem se fazer essa pergunta, sob pena de perderem o curso da história. Devem ainda atentar-se às faixas que se impõem na paisagem e gritam: “SOS Pico de Santa Marta”.
Os moradores do Pico do Morro de Santa Marta sofrem agressões e pedem socorro. Visitantes precisam estar cientes disso e oferecer auxílio e uma forma de ajudar é conhecer a história do lugar. Se precisar, Vitor Lira é o nome do guia que sabe sobre cada mistério que ali um dia se viveu.
A paisagem, o mar, as rochas, a floresta. A pergunta que deve ser colocada por quem passa pelo Pico é: esse mundo que pertence aos sonhos de todo viajante do planeta não pode ser privilégio de pobres? A resposta dada pelos especuladores governantes é não.
O viajante deve saber ainda que mais um “não” na vida daqueles moradores, quinta geração a habitar o lugar, não irá fazê-los descer, tampouco, deixar para trás os rastros de sua ancestralidade, a vista para o mar, a bruma, aura. Eis a paisagem que todos querem fotografar – e a boa gente que nela habita.
Quem visita o Pico de Santa Marta deve esquecer, ao menos nessa viagem, de levar consigo suas câmeras fotográficas. Mas não seria a fotografia a própria razão da viagem? Nesse caso, recomenda-se (mil vezes), por favor, que o viajante não mire teleobjetivas como quem vai atirar. Ao menos aqui, em respeito ao passado, esqueça os tiros. Homens, mulheres e crianças, há séculos, estão cansados de serem exibidos enquanto prêmios no além-mar.
No Pico de Santa Marta, há muito, o lobo foi domado – ainda que ninguém saiba, e as lágrimas continuem a molhar o rosto de toda a gente do lugar. Quando em um dia de chuva se perde o pai, morto pela polícia e arrastado pelos incontáveis degraus da escadaria, não há mais medo. Há a solidariedade que impera. Há o mar, a nebulosa que é a floresta. Há um lobo consigo, dentro, terno, adormecido. Faça silêncio. Não o tema. Não o acorde. Acolha o lobo e quem cuida dele, pois ele guarda e protege aquele que resiste em seu solo sagrado.
A publicação foi uma iniciativa do LABHOI, Laboratório de História Oral e Imagem da UFF. E o comitê editorial foi formado por:
Ismênia de Lima Martins, historiadora, professora Emérita do Departamento de História da UFF; Maria do Carmo Teixeira Rainho, historiadora, pesquisadora do Arquivo Nacional e do Museu Histórico Nacional; Maria Teresa Bandeira de Mello, historiadora, diretora do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ); Mariana de Aguiar Muaze, historiadora, professora do departamento de História da Univer- sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Mauricio Lissovky, historiador, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ); Samantha Viz Quadrat, historiadora, professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF); Silvana Louzada, arquiteta e fotógrafa, doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ (PPGCom).
*Ana Maria Mauad: graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde se doutorou em 1990. Atualmente é professora Titular do Departamento de História da UFF, pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, desde 1992, do CNPq desde 1996 e Cientista do Nosso Estado FAPERJ, 2013-2016. Autora dos livros: Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografias (Edu , 2008); História Visual da Guanabara, juntamente, com Paulo Knauss e Marly Motta (Edições Janeiro, 2015); organizou História Oral e Mídia (Letra e Voz, 2016) e, juntamente, com Juniele Rabelo Almeida e Ricardo Santhiago, História Pública no Brasil: sentidos e itinerários (Letra e Voz, 2016).
**Mariana Lacerda: documentarista, graduada em jornalismo, mestre em História da Ciência pela PUC-SP. Escreveu e dirigiu os filmes de curta duração Menino-aranha (2008/2009), A Vida Noturna das Igrejas de Olinda (2012), Pausas Silenciosas (2013), Baleia Magic Park (2015) e Deserto (2016, apara Aparelhamento, Ocupação Funarte/SP). Diretora da série documental para TV Expresso (Cine Brasil TV), com direção geral de Hilton Lacerda. Autora do livro Olinda (Bebinho Salgado 45/Cinemascópio 2015). Está finalizando seu primeiro longa-metragem, o documentário Gyuri, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural (2015/2016). Argumento e direção da série documental para TV intitulada Histórias de Fantasmas Verdadeiros para Crianças, trabalho desenvolvido no Núcleo Criativo Cinemascópio, Recife (2016).