São Paulo, 24 de junho de 2015.
Oi vô,
nesta carta, é a você que quero expressar minha percepção sobre uma pesquisa recente que compõe a exposição Ver do Meio.
Sinto que você desenhou a minha vida desde que deixou Jurema, fugido pelas discórdias na política. Em Gravatá, para onde levou a família, sua filha – minha mãe – conheceu meu pai. Meu pai descendente de italianos: Calábria Lapenda. Eu nasci em Recife. Adulto, parti para São Paulo.
Devo falar aqui sobre migração e lembrei da gente. Em mim mora uma alma contaminada por diversas migrações e, em uma delas, está você. Esse trabalho que que tem a curadoria do professor Nelson Brissac e no qual tenho a companhia de mais dois fotógrafos, Arnaldo Pappalardo e Mauro Restiffe, tem tudo a ver, para mim, com o lado da sua migração.
Falar sobre movimentos migratórios em São Paulo é desafiador. Essa cidade se constitui de vidas oriundas de lugares diversos. O mundo migra para cá desde sempre. Aliás, essa ideia de “sempre” em São Paulo é peculiar, pois aqui as coisas têm uma dinâmica que deixam facilmente transparecer o que se percebe como provisório. Nas relações, nas tradições. A vida aqui se dá num movimento que por vezes parece se anular: de tão veloz, perde a forma. E o que entendemos por sempre não tem mais tanto valor de história, mas de intensidade, de mobilidade, de rotação.
Numa conversa rápida, vô, quero relacionar dois veios de migrações, e são aqueles que encontro facilmente dentro de mim. Dois lados que envolvem a minha natureza, já que descendo por você dos sertões e pela minha avó paterna da Itália.
Ora me sinto filho de uma migração que vejo enganosamente como heróica, constituída de uma cultura específica que ajudou a definir a maior e mais intensa cidade brasileira. Aqui falo de minha origem pelo viés daqueles que, como parte de mim, vieram pela Europa.
Mesmo que esses europeus tenham aqui chegado por fuga, mesmo que um dia tenham sido vítimas, hoje, talvez, refletem bem sucedidos nomes em meio a uma cidade que tanto acumula derrotas. Um ímpeto me faz enxergar mais imediatamente o meu lado europeu como facilitador nas regras que definem a sociabilidade na cidade em que vivo.
Já em você, vô – ou com você em mim -, encontro uma outra face de migração com a qual lido também. Você lembra outra face de imigrantes aqui de São Paulo. Aqueles que vieram do meio, do interior. Os que chegaram na cidade vindos do próprio Brasil. Desceram dos nordestes. Esses têm a feição de uma migração que muitas vezes é percebida como menos heróica, como se eles tivessem vindo por menos. Muitos deles servem como trabalhadores poucos capacitados. Trazem no sangue a marca dos mais nativos, aqueles explorados pelos colonizadores de nossa história.
Confesso, sinto-me ao meio, e vejo o protagonismo óbvio nas duas histórias que me constituem essencialmente. Trago nessa carta, vô, essas duas formas figuradas de migração. Minha descendência é italiana, como também sou das primeiras gerações urbanas da família. Meus pais tiveram o privilégio de sair do interior para estudar no Recife. Dali, pulei para São Paulo, pois essa cidade, somente a cidade que acesso, delimitada pela zona oeste, prometia mais do que a minha capital natural. Aqui sou um tipo específico, meu sotaque é cativante, me receberam bem. Moro há vinte anos, meus filhos aqui nasceram e vivemos, quase que exclusivamente, em apenas meia dúzia de bairros, os que compõem o centro expandido.
Mas vejo muito você por aqui, vô, quando ando pela cidade ou acesso a periferia. Vejo você na maioria. Amo percebê-lo. Tenho saudade da sua força, sua lida com o mato, com os bichos, sua ciência de artesão e a forma de se emocionar. Seu pouco, muito digno, vivido.
Sou um fotógrafo com muitos anos de prática na rua, na construção de cenas que obrigam minha presença. Encontro pessoas com histórias densas. Essas pessoas me levam a outras e, assim, venho montando uma cadeia de encontros. Ultimamente, tenho caminhado por Heliópolis, Jardim Pantanal, Jardim Lapenna (Lapenda, como meu pai), Jardim Helena. E no centro de São Paulo, tenho visitado haitianos recém chegados, sul-americanos e africanos. Toda essa gente que vive às margens dessa história que, no país, firma-se na exclusão.
Existe algo no ato de me aproximar bruscamente de um assunto, do qual sou dependente. Me fascina o desconforto da aproximação sendo ela íntima ou recente. Um olhar mais imediato que tende a se bastar pelo momento, aquilo que só irromperá da poesia se a carne tocar a cena. E aqui, vô, mobilizo você em uma fotografia que mistura a mim, o fotógrafo, ao assunto. É como dizer que fotografar é um ato íntimo, particular, uma ação, um gesto. Lentes curtas na escala de um caminhante e as imagens aparecem no embate de corpo, como prática do vivido, contaminada pelas tensões do risco que é viver. E estou fotografando essas pessoas de uma forma que a luz daquele momento apareça também como personagem na imagem.
Além da aproximação com o tema, considero que sempre percebo a luz que irei imprimir, a que enxergo nas cenas. Matéria ou ferramenta, não sei ao certo. Mas a luz é sempre presente como forma, como corpo que dá um filtro poético ou expressivo. E, como o tema que venho fotografando é socialmente comprometido (tento evitar transformar essa relação entre luz e sombra como definidora de uma simbologia exata de sentidos – como visível ou invisível, óbvio ou escondido, lembrado ou esquecido), a pergunta que me faço nessas caminhadas, vô, é: como gerar uma luz errante e ao mesmo tempo poética nas fotografias dessas pessoas? Como constituir esses retratos sociais impregnados por uma intenção que mobiliza a luz como matéria, colocando-a como parte do assunto fotografado?
Como se direciona uma luz que se apresenta a mim quando estou numa favela, ou nos cortiços que abrigam imigrantes negros ou sul-americanos? E como dou corpo, materialidade a essa luz, não pela harmonia das formas, simplesmente, mas por uma dissonância pretendida? É jogar no quadro um grito, criar um manifesto fotográfico, fazendo uso de algo irredutível à linguagem: a presença da luz ou, ainda, os matizes de sua ausência.
A luz é como a água — respondi. (…) Mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão”. – Gabriel García Márquez, em Doze Contos Peregrinos.
Além do assunto, da pessoa, a própria luz do ambiente se torna matéria definidora, presente em excesso, à frente como véu ou, de fundo, deixando marcas de sua existência como técnica de expressão. E, vô, lembro da luz do interior de Pernambuco. Do choque que era romper da sombra à luz naquela geografia extrema. Lembro de um mundo que se percebia no contraluz, de fechar parte dos olhos por não aguentar o excesso. Lembro que dominá-la era suportar as horas que demandava te acompanhar. Do alpendre à horta existia uma fronteira a ser vencida, a de chegar ao sol.
Identifico formalmente algo entre a luz e a sombra que me permite expressar uma relação menos harmônica, dissonante. Um espaço no qual existe uma luz exagerada, um escuro impenetrável, ou mesmo uma luminosidade branda cortada por algum elemento que acende o quadro. E isso se torna presente nas fotografias como grão, ruído de pixel, refração, ou pequenas aberrações cromáticas. Muitas vezes, o extremo da exposição constitui uma materialidade sobre um arquivo digital que não suporta tal experimento. E, se há ruídos, é para expressar que respeito os contrastes, dou a eles a autonomia de se somarem pelos atritos.
Vô, tenho algo que não se une facilmente. Tenho duas migrações dentro de mim. Eu tendo a ser muito mais uma que a outra. Já as fotografias que produzo, essas que mostro aqui no Ver do Meio, imprimem um outro lado. E nelas aparece você.
Nessa exposição, te trouxe um pouco comigo. Calado, fazendo sem falar. Você é o que entendo pela palavra força. Lembro, você morreu em 1994 e ali eu começava minha intensa jornada na fotografia. Quando li o texto de Nelson Brissac sobre Ver do Meio, só pensei em ver de dentro. E consegui mesmo foi pensar no espaço que habitas em mim.
* Este texto foi elaborado para uma fala em uma das atividades da exposição Ver do Meio, no Instituto Tomie Ohtake.
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