Vou ao cinema, não escapo da fotografia

[30.maio.2010]

Tenho falado muito sobre cinema aqui no blog. Vejo filmes sem muita pretensão mas, onde houver uma brecha, acabo buscando a fotografia. E muitas vezes encontro.

Na semana passada, fui ver “Viajo porque preciso, volto porque te amo” sem ter a menor idéia do que se tratava. Fui por um motivo bom: gosto dos diretores Karin Ainouz, de “Madame Satã” e “O céu de Suely”, e Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirina e Urubus”. E um motivo não tão bom: num cinema de shopping, era a chance de encontrar uma sala mais tranqüila (não precisava tanto: exatas dez pessoas).

O pretexto é a história de um geólogo que, ainda muito preso ao amor por uma mulher, parte sozinho numa viagem de trabalho pelas terras inóspitas do sertão brasileiro. O que vemos é uma colagem de fragmentos de paisagens e registros quase etnográficos, boa parte deles filmados em super 8 (ou tratados para assim parecer), amarrados pela voz do personagem que conversa consigo mesmo sobre a solidão e o abandono. Numa espécie de roadmovie, os fins-de-mundo por onde ele passa servem como metáfora desses sentimentos.

O resultado pode ser frustrante pra quem busca um filme, mas é de encher os olhos pra quem gosta de imagens, numa perspectiva mais ampla. Um olhar formado pela fotografia tem, por exemplo, uma boa disposição para deter-se sobre imagens que perduram longamente, assim como para dar grandes saltos, coisa que essa obra exige. Das poucas pessoas na sala, algumas ficavam impacientes quando a história não fluia com a linearidade esperada. Pra mim, bastaria o pensamento construído pelas imagens. Aliás, era a narrativa que às vezes sobrava, como um esforço para arrancar uma trama de algo que nasceu despretensioso.

Mas o texto é cuidadoso. Como as imagens, as falas são uma coleção de pensamentos fragmentários. E mesmo quando o filme assume um ar documental, sabe evitar juízos de valor que, no cinema nacional, quase sempre resulta num tom de denúncia ou de deslumbramento.

A fotografia está lá, muito presente. Em algumas passagens, a história se constrói efetivamente a partir de imagens estáticas. Em outras tantas, a cena é tão imóvel e pregnante que o olhar se assume facilmente como diante uma fotografia. E alguns movimentos são tão sutis e delicados, que parecem “fotografias que respiram” (emprestando o termo de Gustavo Pellizzon).

Lembrei logo de alguns pioneiros do que exploram a fotografia no cinema. Lembrei de Marcelo Tassara, principalmente de Abeladormecida, pelo sotaque da fala e das imagens (no caso de Tassara, uma única imagem, com texto adaptado de James Joyce), pela forma como a câmera passeia sobre uma cena estática, e pelo modo como o título surge: “A Bela Adormecida” e “Viajo porque preciso, volto porque te amo” são frases que a câmera descobre em algum canto do filme (para conhecer esse cineasta, vale ler o artigo de Érico Elias, na Studium). Claro, lembrei também de Chris Marker, pelo despojamento – ou falta de purismo – técnico, pela mescla de documentário e ficção, pela forma como as imagens e as palavras se descolam e se reencontram, pelo modo como um pensamento se articula na apropriação de imagens desconexas.

Foi uma boa surpresa sair de casa sem expectativas e encontrar um filme como esse. É um trabalho que poderia estar numa galeria ou numa mostra de vídeo. Mas seria mais óbvio, porque já encontraria olhares bem adaptados. Vale o desafio de colocá-lo no cinema, de formar um público lentamente, mesmo que seja de dez em dez pessoas.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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