Real, Surreal, Sul do Real

[23.maio.2018]

Viagem ao Sul do Real exige um outro tempo – que não é o da instantaneidade do aplicativo ou do dispositivo móvel para ser viajada. A narrativa do fotolivro de Rogério Assis é composta por dípticos de imagens do Brasil e de outros países produzidas e publicadas em tempos e contextos distintos com o uso de aplicativos para câmeras celulares. É uma narrativa visual contínua constituída por imagens heterogêneas, editadas e colocadas lado a lado, formando uma grande “frase-imagem”.

O procedimento de edição contínua e cinemática da Viagem ao Sul do Real remete às estratégias de montagem e construção de linguagem de Eisenstein – referência de Rancière para exemplificar o conceito de “frase-imagem”. E se aplica muito bem a essa narrativa visual composta por imagens mobile, fragmentos do arquivo de imagens do Instagram do fotógrafo. As imagens apropriadas de outros contextos e lugares, deslocadas na formação de dípticos (páginas duplas do fotolivro), ilustram o imaginário de um Brasil multicultural. A chola do Lago Titicaca está presente na feira Kantuta em São Paulo, assim como os letreiros em espanhol coexistem nas paisagens de cidades-fronteiras ao norte e sul do Brasil, territórios cada vez mais coabitados por migrantes. Uma narrativa imagética-literária potente, na qual o jogo de imagens – e de linguagens do que se lê e do que se vê – representa com humor o surreal do Brasil contemporâneo.

O uso de uma câmera celular permitiu que o olhar atento do documentarista capturasse signos vernaculares e cenas inusitadas com muita informalidade, só possíveis de serem clicados com o uso de uma lente-extensão do olho, na palma da mão. Procedimento que não garante por si a construção de uma linguagem visual narrativa.

O artista utilizou-se de estratégias de pré-produção disponíveis nos aplicativos de celular, como o Hipstamatic. A emulação do filme “Blackeyes Ultrachrome” reproduz uma cor sutil e dessaturada e dá unidade tonal ao conjunto de imagens. Fez toda a diferença a atenção dada à pós-produção na preparação dessas imagens, nativamente produzidas para serem visualizadas em interfaces luminosas e reproduzidas na interface impressa em papel, no suporte livro.

Também merece destaque o procedimento de passagem dessas imagens virtuais, publicadas na conta de Assis no Instagram (@roca_pena) há mais de seis anos, para uma outra materialidade e outra linguagem expositiva. Essa tarefa foi feita junto com o designer gráfico Ciro Girard. Esse olhar externo e mais neutro permitiu um salto qualitativo na edição do livro. A dupla conseguiu articular muito bem o design de narrativas documentais com a ficção, própria da narrativa literária e, por que não afirmar, dos fotolivros.

A edição de Viagem ao Sul do Real, realizada com o deslocamento de imagens daqui e de outros cantos do mundo, vislumbra a potencialidade da interface fotolivro na ressignificação dos nossos álbuns de viagens, com as imagens perdidas em nossos arquivos ou nas redes.

Em tempo: a publicação ganhou o Prêmio Latino-Americano mObgraphia 2018 na categoria Fotolivro (parceria com a Editora Origem e a IPSIS Gráfica). Tiragem de 100 exemplares. O lançamento será dia 26 de maio, na Doc Galeria.

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Didiana Prata é designer gráfico e editora de imagem, mestre e doutoranda pela FAU-USP. Professora da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, pesquisa o design e a estética das narrativas visuais em diferentes interfaces.

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