Um ano sem Otto Stupakoff

[02.maio.2010]

Dia 22 de abril fez um ano que Otto Stupakoff (1935 – 2009) nos deixou. Quem o conheceu sabe que era um homem culto, que dominava vários idiomas, um gentleman que articulava como ninguém esse seu saber com inteligência e perspicácia. Fiquei pensando como poderia prestar uma homenagem sem ser piegas e sem deixar de registrar sua ausência sentida. Com certeza, a mídia não faria menção alguma a ele, como não fez, e muito menos se lembraria daquilo que já passou.

Diante disso resolvi compartilhar e aqui registrar uma das nossas muitas conversas sobre arte, vida e influências. Ele sempre me disse que em seu trabalho, a principal referência foi a pintura de Balthasar Klossowski de Rola, ou melhor, Balthus (Paris, 1908 – Rossinière, 2001). Em diversas ocasiões tentei fazer essas aproximações e confesso, em algumas delas constatei a influência e em outras não. Vi Balthus no Moma e no Metropolitan, em Nova York, e percebi semelhanças e diferenças, mas jamais refleti sobre isso. Só agora fica mais ou menos claro. Balthus criou várias situações visuais e algumas delas se tornaram as principais referências e estão presentes parcialmente nas fotografias de Stupakoff.

O crítico Robert Hughes, por ocasião de uma exposição retrospectiva de Balthus no Beaubourg, em Paris, e depois no Metropolitan, em 1984, registrou que ele criava “a superfície calma e a inocência envenenada”, querendo insinuar que sua pintura era conservadora, mas a temática instigante é que talvez fosse detonadora da potência de sua obra. De qualquer forma é interessante perceber como Stupakoff repetiu alguns gestos mais insinuantes e alguns movimentos que são congelados como espontâneos. Na verdade são estudos precisos e calcados no mestre. Vejam estas imagens. Estabeleçam os possíveis confrontos.

Otto Stupakoff e Balthus (Therese sonhando, 1937)

Otto Stupakoff e Balthus (Therese sonhando, 1937)

Só agora, quando me deparo mais pontualmente com a obra de Balthus, é que percebo com mais clareza o vigor da citação. O mundo de Balthus estava longe dos movimentos artísticos síncronos com os quais conviveu, longe do surrealismo por exemplo, mas muito próximo de Freud e da psicanálise. Aparentemente, um paradoxo. Sim, mas o que seria da arte se não fossem essas descontinuidades que correm paralelas ao mundo que gira e produz um esforço coletivo, bem como muitos pequenos esforços individuais nos quais pulsam uma diferença. Assim é o trabalho de Balthus. Corre paralelo à arte que se produzia e se buscava nos anos 30 e 40.

Outro aspecto presente na fotografia de Otto Stupakoff  e também presente em Balthus é um aparente relaxamento da cena. Na verdade, esse aparente flagrante é de uma incrível teatralidade, cujo controle é absoluto, quase obsessivo. Stupakoff sabia muito bem como dirigir suas modelos e tirar delas o melhor momento para sua fotografia. Elas estão quase sempre numa recorrente posição provocativa, no limite, entre o belo e o vulgar, expressando e despertando a libido do Outro. Na fotografia parece que tudo se harmoniza – o movimento, as pernas e os braços desconexos, o corpo que se contorce na representação. Um controle total naquilo que é aparentemente incontrolável, ou seja, a sensualidade que aflora na cena. Nesse sentido, as fotografias de Stupakoff se aproximam fortemente da pintura de Balthus e eu compreendo melhor o que ele queria me dizer.

Ao mesmo tempo, são personagens solitários, imersos em silêncios, confinados em espaços limitados, em que apenas tem importância essa luminosidade que incide sobre os corpos e os movimentos que estes desenham, estejam sentados em cadeiras com seus braços e pernas desajeitados, sejam relaxados nas poltronas, enclausurados no espaço do quadro fotográfico. Uma sensualidade fugaz que mais se parece com momentos de puro tédio. As imagens provocam nossa imaginação porque somos capazes de empreender a cena seguinte insinuada pelo movimento, criando narrativas imaginárias. São como que fossem retratos da incompletude da própria vida que nos atiçam e nos forçam a prosseguir dando vida ao aparentemente inanimado. O que interessava a Otto Stupakoff era produzir uma fotografia que despertasse uma inquietação sutil e provocativa. E nisso ele se tornou um mestre e a melhor das referências para a fotografia brasileira contemporânea.

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Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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