Olhando minha prateleira de teses, reencontrei a dissertação de mestrado de Maria Helena Villar, apresentada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sob orientação de uma grande amiga, a professora Luciana Martha Silveira. Estive algumas vezes nessa Universidade, de onde saem algumas pesquisas muito rigorosas sobre a relação entre comunicação, arte e tecnologia (sejam as novas ou as velhas).
O trabalho da Maria Helena se chama “A fotografia estenopéica revisitada: desconstrução da homologia tradicional através das dimensões sócio culturais da tecnologia”. Fotografia estenopéica é um nome mais técnico para as imagens feitas com as câmeras que costumamos chamar de pin-hole, com a ressalva de que nem toda câmera estenopéica tem, efetivamente, um buraco de agulha.
Como é de praxe, o trabalho começa com um passeio pela história da fotografia e pelas principais vertentes teóricas. Mas da metade em diante que se torna efetivamente original.
Entender essas câmeras artesanais e improvisadas é talvez o modo mais efetivo de desmistificar a técnica, tal e qual nos convidam autores como Arlindo Machado, quando denuncia a “Mística da Homologia Automática” (primeiro capítulo de A Ilusão Especular), ou Vilém Flusser, quando critica os fotógrafos que são “funcionários do aparelho”.
Sobretudo agora, que as câmeras têm mais botões e recursos do que nunca, é incrível descobrir ou relembrar que ela não é mais do que uma caixa vazia e escura, com um orifício numa das faces. Quem já deu aula de fotografia sabe da importância de passar por essas experiências simples e arcaicas. Quem ainda dá aula, sabe da dificuldade de manter nas escolas algumas velharias fundamentais: a câmera, os ampliadores, a sujeirada química toda…
Depois de fazer uma detalhada incursão pelas razões culturais que levam a câmera a ser construída de uma forma e não de outra (isto é, de modo a respeitar o sistema de perspectiva renascentista), a dissertação aborda o trabalho de artistas que subvertem essa programação elementar da fotografia, ou seja, artistas que desafiam e desmistificam o automatismo do aparelho, que deixam de ser seus funcionários. E podem fazer isso radicalmente, porque o controle do processo começa com a fabricação da câmera, ou com a descoberta de coisas que podem servir de câmera. Aí vem algumas boas surpresas.
Alguns artistas variam a forma de posicionar o material sensível na câmera ou de construir o orifício que permitirá a entrada de luz. Por exemplo:
Thomas Hudson monta a caixa com o próprio material sensível, de modo que quase todo o interior da câmera se transforma em imagem, depois de desmontada e revelada. Jürgen Lechner e a brasileira Ana Angélica Costa posicionam o material sensível como um cilindro, no centro de uma câmera com vários furos em sua parede, produzindo uma panorâmica de 360 graus. Joaquim Casado e Claudia Johas trabalham com rasgos (slits) com formatos variados em vez de furos, o que gera uma espécie de desordem na perspectiva. Paolo Gioli usa uma bolacha do tipo cream cracker e aproveita seus vários furos para formar imagens que se repetem e se sobrepõem no papel.
Há também outros que, para além das caixas de sapato, de fósforo, caixotes, quartos, latas, utilizam objetos inusitados. Como diz Jochen Dietrich, um dos autores em que a pesquisa se apóia, “tudo o que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica”: Ilan Wolff usa um pimentão vermelho, Paolo Gioli usa a mão fechada, Thomas Bachler e Jeff Guess usam a boca, Jeff Fletcher usa cascas de ovos.
Como o furo resulta numa baixa exposição à luz, o registro pode se estender por dias, ou meses, ou ser feito em momentos muito distintos. Isso significa que a fotografia se afasta radicalmente da noção de instantâneo: Tarja Trygg registra numa mesma imagem os diferentes trajetos que o sol faz no céu em dias e meses diferentes, o já citado Thomas Bachler usa uma mala como câmera e registra, numa forma totalmente abstrata, o percurso de uma viagem, por exemplo, de Nuremberg a Kassel.
E por aí vai… O trabalho traz um conjunto de 132 imagens, e não deixa de situar o trabalho de artistas brasileiros, como Paula Trope e Neide Jallageas, Dirceu Maués e a já citada Ana Angélica Costa.
Muitas dessas experiências são facilmente encontradas na internet, mas a pesquisa tem o mérito de mapear uma diversidade de situações que poucos poderiam imaginar e de colocá-las a serviço de uma compreensão da fotografia, num sentido muito amplo. O trabalho de Maria Helena é uma espécie de arqueologia que demonstra o quanto as origens são importantes para entender o estado presente das coisas.
A “origem”, como aprendemos com Walter Benjamin, é aquele lugar em que todos os potenciais estavam anunciados e disponíveis, que podem ser silenciados e esquecidos, mas que permanecem acenando para o presente. Desse modo, a origem não é apenas um objeto de culto saudosista, mas um lugar a que se chega quando a história permite realizar o potencial das coisas.
Ao contrário do que faz a indústria quando acrescenta novos recursos aos equipamentos, o foco desta pesquisa e desses artistas todos não é tanto as novas tecnologias, mas as tecnologias plenas.
É um trabalho que merece ser publicado. Por enquanto, a dissertação pode ser encontrada no site Scrib.
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