Tudo o que se enxerga por um furo de agulha

[07.dez.2009]

Olhando minha prateleira de teses, reencontrei a dissertação de mestrado de Maria Helena Villar, apresentada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sob orientação de uma grande amiga, a professora Luciana Martha Silveira. Estive algumas vezes nessa Universidade, de onde saem algumas pesquisas muito rigorosas sobre a relação entre comunicação, arte e tecnologia (sejam as novas ou as velhas).

O trabalho da Maria Helena se chama “A fotografia estenopéica revisitada: desconstrução da homologia tradicional através das dimensões sócio culturais da tecnologia”. Fotografia estenopéica é um nome mais técnico para as imagens feitas com as câmeras que costumamos chamar de pin-hole, com a ressalva de que nem toda câmera estenopéica tem, efetivamente, um buraco de agulha.

Como é de praxe, o trabalho começa com um passeio pela história da fotografia e pelas principais vertentes teóricas. Mas da metade em diante que se torna efetivamente original.

Entender essas câmeras artesanais e improvisadas é talvez o modo mais efetivo de desmistificar a técnica, tal e qual nos convidam autores como Arlindo Machado, quando denuncia a “Mística da Homologia Automática” (primeiro capítulo de A Ilusão Especular), ou Vilém Flusser, quando critica os fotógrafos que são “funcionários do aparelho”.

Sobretudo agora, que as câmeras têm mais botões e recursos do que nunca, é incrível descobrir ou relembrar que ela não é mais do que uma caixa vazia e escura, com um orifício numa das faces. Quem já deu aula de fotografia sabe da importância de passar por essas experiências simples e arcaicas. Quem ainda dá aula, sabe da dificuldade de manter nas escolas algumas velharias fundamentais: a câmera, os ampliadores, a sujeirada química toda…

Depois de fazer uma detalhada incursão pelas razões culturais que levam a câmera a ser construída de uma forma e não de outra (isto é, de modo a respeitar o sistema de perspectiva renascentista), a dissertação aborda o trabalho de artistas que subvertem essa programação elementar da fotografia, ou seja, artistas que desafiam e desmistificam o automatismo do aparelho, que deixam de ser seus funcionários. E podem fazer isso radicalmente, porque o controle do processo começa com a fabricação da câmera, ou com a descoberta de coisas que podem servir de câmera. Aí vem algumas boas surpresas.

Alguns artistas variam a forma de posicionar o material sensível na câmera ou de construir o orifício que permitirá a entrada de luz. Por exemplo:

Thomas Hudson monta a caixa com o próprio material sensível, de modo que quase todo o interior da câmera se transforma em imagem, depois de desmontada e revelada. Jürgen Lechner e a brasileira Ana Angélica Costa posicionam o material sensível como um cilindro, no centro de uma câmera com vários furos em sua parede, produzindo uma panorâmica de 360 graus. Joaquim Casado e Claudia Johas trabalham com rasgos (slits) com formatos variados em vez de furos, o que gera uma espécie de desordem na perspectiva. Paolo Gioli usa uma bolacha do tipo cream cracker e aproveita seus vários furos para formar imagens que se repetem e se sobrepõem no papel.

Jürgen Lechner, Schloss weibenstein 1, Eckental Alemanha, 2006.

Jürgen Lechner, Schloss weibenstein 1, Eckental Alemanha, 2006.

Há também outros que, para além das caixas de sapato, de fósforo, caixotes, quartos, latas, utilizam objetos inusitados. Como diz Jochen Dietrich, um dos autores em que a pesquisa se apóia, “tudo o que é oco pode se transformar numa máquina fotográfica”: Ilan Wolff usa um pimentão vermelho, Paolo Gioli usa a mão fechada, Thomas Bachler e Jeff Guess usam a boca, Jeff Fletcher usa cascas de ovos.

Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 1999 (fotos feitas com a boca).

Thomas Bachler, O Terceiro Olho, 1999 (fotos feitas com a boca).

Como o furo resulta numa baixa exposição à luz, o registro pode se estender por dias, ou meses, ou ser feito em momentos muito distintos. Isso significa que a fotografia se afasta radicalmente da noção de instantâneo: Tarja Trygg registra numa mesma imagem os diferentes trajetos que o sol faz no céu em dias e meses diferentes, o já citado Thomas Bachler usa uma mala como câmera e registra, numa forma totalmente abstrata, o percurso de uma viagem, por exemplo, de Nuremberg a Kassel.

Tarja Trygg, Solargraphy , Helsinki, 2003.

Tarja Trygg, Solargraphy , Helsinki, 2003.

E por aí vai… O trabalho traz um conjunto de 132 imagens, e não deixa de situar o trabalho de artistas brasileiros, como Paula Trope e Neide Jallageas, Dirceu Maués e a já citada Ana Angélica Costa.

Muitas dessas experiências são facilmente encontradas na internet, mas a pesquisa tem o mérito de mapear uma diversidade de situações que poucos poderiam imaginar e de colocá-las a serviço de uma compreensão da fotografia, num sentido muito amplo. O trabalho de Maria Helena é uma espécie de arqueologia que demonstra o quanto as origens são importantes para entender o estado presente das coisas.

A “origem”, como aprendemos com Walter Benjamin, é aquele lugar em que todos os potenciais estavam anunciados e disponíveis, que podem ser silenciados e esquecidos, mas que permanecem acenando para o presente. Desse modo, a origem não é apenas um objeto de culto saudosista, mas um lugar a que se chega quando a história permite realizar o potencial das coisas.

Ao contrário do que faz a indústria quando acrescenta novos recursos aos equipamentos, o foco desta pesquisa e desses artistas todos não é tanto as novas tecnologias, mas as tecnologias plenas.

É um trabalho que merece ser publicado. Por enquanto, a dissertação pode ser encontrada no site Scrib.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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