Há a história que construímos e há a história que se inscreve nas coisas. Suas temporalidades são distintas: a primeira tem a ansiedade de agenciar a memória das próximas gerações, a segunda se produz independentemente de haver quem a interprete. Uma se afirma pela grandiloquência dos monumentos, a outra se faz simplesmente disponível no silêncio das ruínas. Uma é a que gostaríamos de deixar como herança, a outra não se permite possuir, porque trata exatamente de desapropriações. Uma fala de conquistas, a outra fala invariavelmente de perdas.
Um tanto da história que vemos em Shining foi inscrita pela presença humana. São traços ainda visíveis das formas de fruição desse lugar: a contemplação da paisagem e o gozo do lazer. Outro tanto se manifesta pelos movimentos discretos com que a natureza retoma para si aquele território. É uma história que prossegue à revelia dos homens e que fala exatamente de sua ausência.
Tentamos em vão converter esse lugar em cenário, completar os indícios dos acontecimentos e construir com eles um roteiro que mantenha o ser humano no centro da trama. Mesmo que todos os personagens tenham se retirado, eles ainda não levaram consigo seus fantasmas. A chuva e o rio se encarregam de manter cheia a piscina, enquanto o vento que agita sua água parece apenas prolongar as ondas deixadas pelo último mergulho. Mas é difícil medir o tempo que já dura esse vazio. O que vemos nas imagens não é um instante, no sentido clássico da fotografia, é a persistência desse momento de desfecho que soa tão recente quanto definitivo. O ser humano está lá, mas toda voz que tentar arrancar dali a sua história será abafada pelo silêncio que agora se impõe.
Edu Marin sempre se aproxima dos lugares que fotografa com gestos comedidos e uma performance que não reivindica para si grande atenção. Não haveria outra forma de entrar verdadeiramente ali, a não ser participando desse silêncio. O que o artista faz é simplesmente rodear o espaço em torno daquela piscina, buscando nos objetos as tensões que resistem. Nessa primeira aproximação, nada muito além de uma topografia: marcações que indicam a posição, o relevo e a textura das coisas que foram deixadas sobre aquele terreno.
Em princípio, essas tensões parecem apenas formais: geometrias simples contrastando com o desenho complexo da floresta. No mais, as intervenções do empreendimento parecem ter sido negociadas com alguma delicadeza: uma quadra e um playground que se disfarçam de clareiras, uma piscina de pedra preenchida com água nativa. Assim o hotel foi sendo construído, como se fosse possível integrá-lo à natureza sem perturbá-la, como se ele apenas oferecesse à paisagem o convívio e a contemplação que ela mesma demandava: que desperdício produzir um espetáculo sem espectadores!
Mas a violência já estava colocada desde muito antes, no modo como a cultura só consegue se pensar como antítese de uma natureza que precisa subjugar. Ao demarcar uma reserva, admite-se uma perda, ao mesmo tempo em que se dedica o que resta ao usufruto do homem: aquilo que ele precisa para se distrair ou, ao menos, para respirar. O que se quer compensar com a reserva não é tanto o que foi destruído, mas a energia que foi despendida para impor a civilização. Depois de tanto trabalho, merecemos um pouco de descanso, um pouco de ar puro.
Algumas vezes, a natureza dá sua resposta na forma de catástrofes, arrasando em minutos aquilo que o homem devotava à eternidade. Neste caso, ela reconquista seu território serenamente. Com o mato, a terra, a ferrugem, a bruma, ela apenas recoloca sua assinatura sobre as coisas que foram deixadas em seu espaço. Ela parece até mesmo zelar pelos vestígios da presença humana. Mas há nesse cuidado uma ironia: a evidência de que não precisamos de nenhuma força exterior para que nossos empreendimentos se transformem em ruína. Fazemos isso por nossa própria conta.
Nessa história que se inscreve nas coisas, somos os últimos personagens a surgir e os primeiros desaparecer. Mas resta uma ponta de otimismo: ainda há beleza no modo como nossa breve participação é descrita.
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* Texto feito para a Exposição Shining, de Edu Marin
Shining, de Edu Marin, será mostrada ao longo de 2015 em unidades do Sesi do Estado de São Paulo. Está agora em cartaz no Sesi Itapetininga, até 30 de maio.