Quando a verdade não importa

[21.nov.2010]

Por causa de uma reportagem sobre a autobiografia de Robert Capa, retornei às suas imagens e me detive sobre a polêmica fotografia do miliciano, na Guerra Civil Espanhola.

Robert Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950

Robert Doisneau. O Beijo do Hotel de Ville, 1950

Senti quando o beijo de Doisneau foi desmascarado, e torci para que a tese da encenação na foto de Capa fosse apenas especulação. Mas os céticos – para quem realidade e fotografia são coisas sempre avessas – tinham razão, e nos olharam com um ar de “eu avisei!”.

Por vocação ou por obrigação, quase todos nós aprendemos a desconfiar das imagens. Dominamos seus códigos, suas armadilhas retóricas, suas estratégias de sedução.  Com a devida autoridade, temos passado também essa lição aos nossos alunos.

Robert Capa. Morte de um miliciano, 1936.

Robert Capa. Morte de um miliciano, 1936.

Mas voltei à fotografia do miliciano e percebi algo curioso: porque uma ponta de fé ainda persiste? Porque ainda sinto nessa imagem a mesma força? Por que ainda vejo aquilo que sei não ser verdadeiro? Ainda vejo um homem que corria na direção do inimigo como se quisesse impedir sozinho a entrada dos fascistas naquele vasto território. O tiro cujo impacto interrompe seu movimento e o lança na direção contrária. O instante da morte, quando a expressão de dor ainda não se desfez, quando a mão já deixa escapar a arma, mas ainda não o idealismo. O corpo que, tombando para trás, se projeta para o futuro e, ainda hoje, nos convoca para a sua luta. Nada disso é verdade, mas está tudo lá.

O que sustenta a imagem não é tal noção de verdade. Ela interessa à grande ciência que busca compreender realidades imutáveis: Newton descobriu a verdade sobre a atração dos corpos. Interessa também à pequena moral: a polícia descobriu a verdade sobre certo assassinato que comove o público. Uma coisa é tão estável que não precisa ser lembrada, a outra é tão insignificante que logo será esquecida.

As imagens operam no domínio da memória, que não é nem tão definitiva quanto a gravidade e nem tão efêmera quanto um fato televisivo. Ela persiste, sempre em movimento. As memórias mais intensas não almejam a verdade, caso contrário elas se esgotariam diante de uma prova. Elas estão aí para serem vividas em sua incompletude, repetidamente, e aquilo que lhes falta é exatamente o que permite a ela tocar o presente. Como diz Chris Marker, “uma memória total é uma memória anestesiada” (Sem Sol, 1983).

A foto de Capa não é intensa porque mostra exatamente o que ocorreu, mas porque mantém viva uma realidade, porque a torna memorável. Ela opera como os mitos.

Curioso que “mito” tenha se tornado para nós sinônimo de “mentira” (o documentário que denuncia a foto de Capa tem a mesma linguagem cientificista de um programa do tipo “mythbusters”, território de verdades inúteis e efêmeras). Uma narrativa não se torna mítica por ser verdadeira ou falsa, mas por ser o modo mais efetivo de fazer o passado atuar na busca de um sentido para o presente. Nunca foi importante saber se a Guerra de Tróia aconteceu tal e qual descrito na Ilíada. É parte da mitologia de nossos ancestrais, mas suas invenções são tão consistentes que, ainda hoje, recorremos a ela para pensar o que somos. Em contrapartida, quantas imagens mais verdadeiras a gente não esquece todos os dias?

Algumas imagens constituem uma espécie de mitologia, são aquelas que parecem deixar o tempo em suspensão. Ainda temos pela frente a luta que está prestes a ser perdida na foto de Capa. Mas temos também o amor que nunca cessa na foto de Doisneau.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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