Pequena história da Fotografia – Remix*

[30.abr.2012]

Por quais caminhos uma nova “pequena história” da fotografia poderia nos levar – uma história que começasse a ser escrita de olho nas imagens que Walter Benjamin jamais viu? Quando o filósofo redigiu seu ensaio, em 1931, considerava que os primeiros cem anos da fotografia haviam sido marcados por um debate teórico, sob todos os aspectos, infrutífero, uma vez que comungavam os debatedores de um conceito de arte “alheio a qualquer consideração técnica”. Ao longo dos seus primeiros cem anos, e apesar de seu desenvolvimento acelerado, a fotografia havia persistido em justificar-se “diante do mesmo tribunal que ela havia derrubado” – o tribunal da Arte. Bandeiras como a da “arte pela arte” tentavam apenas “proteger o ‘gênio’ contra o desenvolvimento da técnica”.

A previsão de que o “tribunal da arte” tinha seus dias contados, uma vez que subsistia graças uma aura postiça, arrematada numa queima de estoque das religiões secularizadas, frustrou-se. Desde a década de 1980, testemunhamos o ingresso da fotografia, por direito próprio, nos foros da arte. Em larga medida, a própria fotografia teve papel decisivo no que veio a se chamar “arte pós-moderna”, particularmente na constituição deste novo habitante dos museus e galerias que atende pelo nome de “artista visual”. No início dos anos 1990, o historiador e crítico André Rouillé já sugeria que “o devir-arte” da fotografia era “inseparável do declínio histórico de seus usos práticos.” Isto é, quanto mais “diminuía a eficácia da fotografia enquanto instrumento de poder”, mais disponível para a arte ela se tornava. O crítico e curador francês, Régis Durand, coincidia no julgamento de que a artisticidade da fotografia era, em larga medida, um efeito colateral ou compensatório de deslocamentos no “campo das representações”, onde a fotografia perdera o lugar privilegiado que, por algumas décadas, havia sido seu: “cada vez que um campo perde algumas de suas funções ou renuncia a elas, ele ganha autonomia artística”.

Mas que lugar é este, de onde a fotografia havia sido deslocada? O crítico de fotografia do New York Times à época, Andy Grundberg, sugerira em um artigo que a “era da reprodutibilidade técnica” tinha dado vez à “era da simulação eletrônica”, e diagnosticava que os artistas pós-modernos “estão interessados na fotografia não como um meio distinto para descrever o mundo, mas como uma encarnação ou metonímia de como a cultura representa a si mesma.” No limite, é como se a fotografia tivesse sacrificado a si mesma (ou aquilo que imaginariamente fora) para que uma “arte pós-moderna” viesse a existir. Para a pesquisadora norte-americana Abigail Solomon-Godeau, o resultado da autópsia é óbvio: visando alcançar por fim um lugar no campo da arte, a fotografia moderna cometera suicídio.

Esta seguramente não é única história que os últimos cem anos (os nossos cem anos) podem nos contar. Há uma história interna ao dispositivo, por exemplo, em que a aceitação da técnica abre uma zona de resistência ao mecânico (não necessariamente inconsciente) que faz da hesitação o núcleo da experiência de subjetivação do fotógrafo moderno (essa é a história que eu procurei contar em A Máquina de Esperar). Mas há ainda outra, entre tantas possíveis, que diz respeito às relações entre imagem e mundo, uma história que de tão comprida quase não se distingue de uma história da própria humanidade.

Sempre que a fotografia inclui outra imagem dentro dela, encena um capítulo desta história. As imagens que formamos a partir do mundo vivem constantemente ameaçadas por aquelas que emergem da memória, do sonho e da imaginação. Desde a sua invenção, a fotografia foi progressivamente ocupando o lugar de guardiã desta distância, tão necessária quanto problemática. Cumpriu bravamente sua missão até fins do século passado, não como um leão-da-chácara, mas como a bailarina na corda bamba esticada de uma ponta a outra da nossa consciência. Zelava por esta distância – distância entre a imagem que comprova e a imagem que ilude – tencionando-a, pois não podia parar de percorrê-la sob o risco de despencar.

Robert Frank. Words. Nova Scotia, 1977

Talvez fosse pensando nesta bailarina que Robert Frank, nos anos 1970 – quando praticamente já havia abandonado a fotografia em favor do cinema – pendurou em um varal, contra o horizonte da Nova Escócia, algumas de suas fotos mais famosas.  O historiador da arte alemão Hans Belting vê nisso um gesto de desapego em relação à unicidade do registro fotográfico, um esforço derradeiro para restabelecer seu lugar em um fluxo contínuo de lembranças. “Para mim, a imagem deixou de existir” – diria Frank na época. Tratava-se preservar a imagem deste meio – a fotografia – que agora insistia em convertê-la em coisa. Das palavras ditas (“words”) e das imagens vistas, teriam sobrado apenas objetos.

Garry Winogrand. John F. Kennedy, Convenção Nacional Democrática, Los Angeles, 1960

De seu refúgio no litoral gelado do Canadá, Frank observava as grandes transformações no campo da imagem, capitaneadas, em muitos sentidos, pelo advento e difusão dos meios eletrônicos. É disso que nos dá testemunho essa fotografia de Garry Winogrand. É uma imagem duplamente profética. Premonitória a respeito de uma campanha que, segundo os cientistas políticos, foi a primeira vencida pelo carisma midiático de um jovem Kennedy contra seu rival, Richard Nixon, então um representante da velha escola (vitimado mais pela sudorese do que pela retórica). Mas é também premonitória do que viria a se tornar um clichê acadêmico nas décadas seguintes: a fotografia, o cinema e a televisão estavam em vias de transformar o mundo e nós todos em imagem. Daniel J. Boorstin, importante historiador e intelectual norte-americano, por muitos anos diretor da Biblioteca do Congresso, queixava-se, em 1962, que as imagens haviam se misturado ao “sonho americano”: “nós nos apaixonamos por nossa própria imagem, pelas imagens que criamos, que acabaram por se tornar imagens de nós mesmos”. E concluía: “como indivíduo e como nação, nós agora sofremos de narcisismo social”.

O fim da era moderna e o início do que alguns chamariam de pós-moderno, que esta fotografia de Winogrand representa, assinala aqui este gozo narcísico generalizado no qual mergulhamos e que perdura até o hoje. Não admira que, nestas circunstâncias, a própria imagem pode assumir caráter monumental. Todos nos tornamos um pouco como turistas, com o olhar colonizado por imagens já vistas, viajando para ver o que já se conhece.  Isso é o que demonstra, de forma bem humorada, o vídeo “Steps” (1987), de Zbig Rybczynski, em que um grupo de turistas norte-americanos visita o monumento do cinema soviético “Encouraçado Potemkin”, dirigido por Serguei Eisenstein, em 1925, tendo inclusive um guia com a missão de explicar-lhes a poética do filme.

Não há dúvida de que a fotografia cumpriu um papel crucial na transformação do mundo em imagem, alterando o modo como o habitamos. Mas algo também sucedeu conosco. Nesta obra de Roberta Dabdab, que Éder Chiodetto teve a perspicácia de incluir na exposição Geração 00, tudo está sabido de antemão: conhecemos tanto a situação de fotografar quanto a de ser fotografado ao lado de monumentos, pois não é outro o sentido desta pintura de Monet nas paredes do Museu de L’Orangerie: um monumento que conhecemos ou teríamos que conhecer. A fotografia apropria-se tanto da plasticidade impressionista – em que o corpo do observador estava implicado na apreensão de uma obra que não se resolvia em si mesma – quanto da situação museográfica que induz uma absorção do visitante na obra (algo que já havia sido tematizado por Thomas Struth).

Roberta Dabdab. Mulher fotógrada homem em frente às gigantescas ninféias de Monet, série L’Orangerie, 2008

Na fotografia de Roberta Dabdab não são apenas os limites entre pintura, fotografia e corpo que desaparecem. Assim como não se trata mais de alertar sobre o risco de preferirmos nossa imagem em detrimento de nós mesmos – como foi feito ao longo das décadas de 1960 e 1970. A pixelização generalizada sugere agora que o verdadeiro risco (talvez, fato já consumado) é o desaparecimento das distinções entre imagem e mundo. Quando a artista escreve na legenda: “Mulher fotografa homem em frente às gigantescas ninféias…”, isso já remete menos a um fragmento de mundo do que à revelação de que mundo, imagem, essa mulher que fotografa (a própria artista, afinal) já habitariam um cenário em que não apenas as distinções quanto aos regimes de representação desapareceram, mas também sumiram todas as diferenças materiais.

Hoje estou convencido que a tensão fundamental, constitutiva da fotografia e de sua cultura, não foi entre verdade e mentira ou entre arte e técnica (para mencionar apenas os debates clássicos), mas entre imagem e mundo. Deslocada pouco a pouco do lugar que ocupou por mais de 150 anos de guardiã problemática desta distância/diferença, o experimentalismo e o hibridismo contemporâneos não refletem apenas as mudanças radicais porque passa uma determinada prática cultural, mas são igualmente alimentados pela intuição de que o nosso destino e o destino da fotografia estão, de alguma maneira, conectados.


* Desta vez, com a colaboração de Juliana Martins.

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Historiador, roteirista, pesquisador, doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da ECO-UFRJ.

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