O vídeo nos oferece mais que a fotografia

[20.nov.2009]

O Let’s Blogar colocou novamente a questão sobre o futuro da fotografia, relembrando que as câmeras digitais fazem vídeo em HD e que alguns espaços tradicionalmente ocupados pela fotografia estão agora aptos a receber imagens em movimento, sejam porta-retratos ou páginas de revista.

Já temos exemplos suficientes de que, no campo da arte, as linguagens e tecnologias não se substituem, mas a discussão é sempre pertinente no que se refere ao papel mais utilitário da imagem, na ciência, na comunicação, nas documentações sociais. Algumas dessas coisas vão nos divertir um pouco, outras vão mudar – como já tem mudado – o modo como produzimos e como percebemos as imagens.

Não sou a pessoa mais indicada para discutir o mercado. O Let’s Blogar fez boas ponderações e se encarregou de oferecer alguns bons links para esse debate. Queria pensar a fotografia numa relação mais abrangente e cotidiana com a produção de memória.

Para começar, assumo meu conservadorismo: de um lado, só consigo imaginar um porta-retratos digital sendo vendido nesses programas de TV, entre um multiprocessador de alimentos e um aparelho de ginástica. E, de outro lado, não consigo imaginar um porta-retratos com um slide-show ou vídeo ligado o tempo todo na estante da sala. Menos ainda, alguém ligando o porta-retrato quando chega a visita.

Memória e desejo

A grande vantagem do vídeo é que ele oferece uma imagem mais completa, mais prolixa, nos dá mais informação que a fotografia.  Pode soar estranho, mas isso mesmo já me leva a supor: a vantagem da fotografia é o fato de que ela nos dá uma imagem mais sutil, mais lacônica, com menos informação.

Andre Kertesz, 1979.

Andre Kertesz, From my window, 1979.

Sem dúvida há momentos que pedem o registro do movimento. Mas, de todo modo, os objetos de memória mais importantes operam por intensidade, não por estensão. Eles têm aquilo que Barthes, referindo-se à fotografia, chamou de “força metonímica” (uma parte que traz a sensação de presença do todo ausente). Portanto, uma força que é tanto maior quanto menor o fragmento de mundo que é capaz de nos afetar. Um brinquedo que sobra da infância, uma conchinha recolhida na praia, o ingresso de um show não relatam muita coisa sobre o passado mas, de algum modo, parecem carregá-lo consigo. São fetiches que operam naquilo que ainda hoje pode restar de magia, no sentido antropológico do termo: o pensamento mágico, superado pelo pensamento racional, desconhece a diferença entre o signo e o objeto representado por esse signo, entre a imagem e o mundo. A fotografia às vezes parece operar desse modo: é a razão de se guardar e tocar quase com carinho a imagem das pessoas que amamos, bem como de se picar em pedacinhos a imagem de quem passamos a odiar. Essa sobreposição entre a imagem e o mundo é tanto mais poderosa quanto maior for a distância e a desproporção entre eles (para o bom feiticeiro, basta uma peça de roupa, um fio de cabelo para poder se colocar diante de alguém).

A fotografia funciona desse modo: ela nos encanta não tanto pelo tanto que ela explicita mas, ao contrário, pelo que oculta e que, não estando ali, deve ser recuperado pela imaginação.

Isso pode ser discutido no plano teórico: a psicanálise nos ensina que o desejo sempre atua sobre uma lugar vazio. Ou seja, só pode mobilizar o desejo aquilo que não está dado ou, ainda, o desejo se desloca para outro lugar vazio quando seu suposto objeto se oferece por completo. É a diferença entre o erótico e o pornográfico: o primeiro é intenso, porque insinua sem oferecer quase nada, dando a certeza de que falta algo para ser visto; o segundo é enganoso, esvazia-se ao oferecer tudo, por não haver nada que se queira ver e que já não se tenha visto.

Mas é possível demonstrar isso na prática de nossa relação com as imagens. As imagens se tornam importantes quando são quase perdidas, quase esquecidas, e depois reencontradas. Os vídeos ou os velhos super 8, que nos dão mais que a fotografia, se tornam mais interessantes quando deles só restam fragmentos ou quando, por sabedoria, eles são editados para exibir apenas fragmentos. Eu me pergunto se os turistas que viajam com a câmera ligada o tempo todo realmente assistem o que gravam, ou apenas se reconfortam com o fato de saber que tudo está lá. E tenho a impressão de que nunca olhamos tão pouco para nossas fotografias de viagem quanto agora, quando retornamos com milhares de imagens que, aliás, já foram vistas no LCD da câmera.

Cada vez mais é importante a figura do editor, essa pessoa que tem o poder e a sabedoria de não mostrar o que não tem força. Dizem que os fotojornalistas, num futuro próximo, em vez de se darem ao trabalho de encontrar o momento certo, poderão voltar para suas redações com vídeos de qualidade suficiente para extrair o frame que será publicado. Se isso acontecer, mais do que nunca, os editores serão necessários e os bons “repórteres de imagem” ainda serão aqueles poucos que saberão encontrar no fluxo das coisas uma meia dúzia de fragmentos indispensáveis.

É absurdo o princípio de que imagem boa é aquela que nos oferece mais. A fotografia já produziu essa falácia no século XIX, ao tentar exibir suas vantagens sobre a pintura. Mas também seria também absurdo reagir ao vídeo do mesmo modo que, naquela ocasião, a pintura reagiu à fotografia.

O vídeo é fabuloso. Disputará alguns espaços com a fotografia e provavelmente conquistará vários deles. Mas não pelos motivos que estávamos supondo, não porque oferece mais. Ele ocupará seu lugar na medida em que souber selecionar, tornar-se lacônico, operar por intensidades. Em outras palavras, oferecer as lacunas necessárias ao desejo e à memória. Também precisará saber conter o movimento e fazer a imagem durar diante dos olhos para que ela tenha consistência. E aprender a olhar com certo silêncio para as coisas banais, para tornar essa memória universal.

Cao Guimarães, Da janela do meu quarto, 2004.

No filme Sem Sol (1992), Chris Marker imagina uma civilização que habitará a Terra no ano 4001 e que será capaz de lembrar de todas as coisas: “após muitas histórias de pessoas que que perderam a memória, eis a de alguém que perdeu o esquecimento”. Esse habitante do futuro não entenderá a emoção de ouvir uma música ou de ver um retrato, coisas ligadas à miséria de sua pré-história. A conclusão já havia sido dada no começo desse relato: “uma memória total é uma memória anestesiada”. Assistam ao filme todo e vejam como que o valor da montagem (da bricolagem) que Marker faz está mais nos saltos que realiza, nas lacunas que deixa, do que na ilusão de continuidade que o cinema poderia muito bem produzir (esse filme acompanha o La Jetée no mesmo DVD lançado aqui no Brasil).

Também encontramos um recado semelhante num texto bastante conhecido de Borges, Do rigor na ciência:

… Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal perfeição que o mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País não resta outra relíquia das disciplinas geográficas.

(Suaréz Miranda: Viajes de Varones Prudentes, Livro Quarto, Capítulo XIV, Lérida, 1658.)

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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