O selfie de Derrida

[19.maio.2014]

Numa tentativa – tardia e difícil – de aproximação ao pensamento de Jacques Derrida, encontrei este documentário em que o filósofo franco-argelino fala de sua relação com a fotografia: ele justifica porque, até certo momento de sua vida, não permitia a divulgação de sua imagem.

Derrida, 2002. Documentário dirigido Kirby Dick e Amy Ziering [documentário integral disponível no You Tube]

Nesse fragmento, ele explica que aquilo que escreve a respeito da literatura propõe “conduzir à desfetichização do autor, principalmente, do autor tal e qual ele aparece nos códigos de uma fotografia pública”. Mesmo que, em certo sentido, “publicar seja aparecer”, ele completa, “escrever é se retirar”.

Suponho haver na base dessa opção de Derrida duas heranças ou, ao menos, duas afinidades. Primeiro, a tendência iconoclasta que marca toda uma linhagem de intelectuais franceses de sua geração, a exemplo de Guy Debord e Jean Baudrillard, que identificam na crescente valorização da imagem os riscos de um esvaziamento de sentido pela fetichização, pela espetacularização e por certa usurpação do real. Cabe dizer que, apesar de assimilar tal desconfiança, Derrida nunca compartilhou do repertório marxista em que se apoiam as críticas desses autores.

Segundo, Derrida foi leitor e interlocutor de dois pensadores que se empenharam em desconstruir a noção do autor: Barthes, com o ensaio A morte do autor, de 1968, e Foucault, com a conferência O que é um autor?, de 1969. O primeiro observa a distância entre o escritor e o pensamento construtor da obra literária: “o autor entra na sua própria morte, a escrita começa”. O segundo faz a arqueologia dessa função-autor a partir de uma pergunta muito direta: “que importa quem fala?”.

Derrida prossegue a entrevista dizendo que tudo muda a partir de 1979, quando encabeça os Estados Gerais da Filosofia, evento-manifestação realizado na Sorbone que convocava o pensamento teórico a uma tomada de posição política. Há no vídeo um erro de tradução: a legenda fala em 1969, espécie de ato falho que projeta sua iniciativa para o contexto das manifestações de maio de 68. Derrida também estava lá, teve participação relativamente discreta, mas certamente sofreu forte influência desse momento.

Derrida, nos États généraux de la philosophie, no Grande Anfiteatro da Sorbona, 1979.

Derrida, nos Estados Gerais da Filosofia, no Grande Anfiteatro da Sorbonne, 1979.

Derrida lembra  que, como havia jornalistas presentes na ocasião dos Estados Gerais, e como se tratava de uma manifestação pública, não era mais possível controlar a veiculação de sua imagem. Ele decide então “deixar seguir”. Em outro ponto do documentário, diante de um retrato seu pintado por Dominique Renson, ele ironiza dizendo que, sem fazer qualquer julgamento estético, acha estranho (“c’est bizarre!), mas o aceita. E relembra: “eu já não tenho vontade de destrui-lo. Tantas vezes eu tive vontade de destruir fotografias e imagens”.

Sem dúvida, Derrida se coloca a partir de então numa posição bastante distinta daquela em que pensa o autor da obra literária, que deve desaparecer em sua escrita. Não é mais o caso: a liderança política precisa ter um rosto. Isso tem a ver com uma das razões que pesam, segundo Foucault, sobre a construção histórica da função autor: “os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores” (O que é um autor?).  Se a função da autoria é atribuir responsabilidades ao que se diz, vemos em Derrida o outro lado da moeda, o lado daquele que se assume transgressor: é necessário responsabilizar-se pelo que é dito, é preciso dar a cara a tapa.

Derrida prossegue a entrevista buscando, agora com palavras um pouco mais tateantes, uma segunda explicação para a dificuldade que tinha com a publicação de seus retratos. Ele fala de um “horror ao narcisismo”, sentimento que cultivou ao longo da vida, e também de uma angústia diante da morte que a fotografia inevitavelmente demarca. Aqui, as justificativas para a mudança de posição a partir de 1979 (a legenda insiste em 1969) são mais lacônicas. Mas é possível encontrar em sua trajetória escolhas que complementam sua resposta. Para além das fotografias cuja veiculação pela imprensa ele apenas “não controla”, Derrida assume como parte de seu projeto político o compartilhamento de uma memória e de uma imagem de si.

Ele falará mais abertamente de sua história em obras como Circonfession (1991), escrito durante a agonia de sua mãe (como não lembrar de A câmara clara, de Barthes?) e que trata  do esquecimento da circuncisão (isto é, de sua origem judaica); também em Monolinguisme de l’autre (1996), sobre a insuficiência do idioma francês como língua materna diante da identidade complexa de um judeu assimilado, nascido numa Argélia colonizada pela França. Encontrei ainda referências a outros livros – aos quais não tive nenhum acesso – como Voiles (1989), Mémoires d’aveugle (1990), La contre-allée (1999), que são reconhecidos como autobiográficos e intensamente políticos.

Derrida já havia contaminado de um modo muito original sua teoria com histórias pessoais em Cartão-postal: de Sócrates a Freud e Além (1980). Nesse livro, ele parte de suas experiências de viagem para pensar a escrita filosófica como o envio de um postal: o que significa esperar que se comunique a essência de lugar quando se está em trânsito, quando o autor pode não estar mais ali quando o discurso chegar a seu destinatário? Derrida depreende de sua experiência com a imagem a possibilidade de uma crítica à abordagem da filosofia, uma disciplina em que a palavra é tão hegemônica, exatamente por sua suposta estabilidade. É exatamente esse trânsito – seu empenho na construção de uma memórias e seus engajamentos na transformação do mundo – que ele irá evidenciar com o agenciamento de sua imagem.

Jacques Derrida, 2001. Foto de Joel Robine.

Jacques Derrida, 2001. Foto de Joel Robine.

No fragmento de vídeo acima ele diz que, a partir de 1979, tornou-se passivo e resignado com relação à divulgação de sua imagem. Mas não é difícil encontrar nele um papel mais ativo nesse processo: diante da câmera, ele efetivamente atua, como diz Michel Lisse a respeito desse mesmo documentário, sugerindo que não há na filosofia pensador cuja iconografia seja mais importante (Iconographie de Jacques Derrida, 2009). Derrida se assume como figura pública, é generoso em suas entrevistas, posa para a fotografia e colabora com a produção de documentários. Às vezes não escapa aos estereótipos, mas não deixa de ironizá-los. De todo modo, seduz o público com sua imagem. Entre os escritos autobiográficos e as imagens que Derrida articula, não deixa de haver a construção de um autorretrato.

Esse processo de aceitação da imagem não deixa de incluir o enfrentamento teórico e afetivo do horror que antes sentia diante da morte e do narcisismo. Derrida se recusa a tomar a vida dos filósofos como explicação psicologizante de suas ideias. A biografia, sobretudo a autobiografia, não é feita apenas de lembranças e certezas: é também o discurso sobre aquele que foi esquecido, que não pode ser reencontrado, que não coincide com seu nome, uma alteridade que está morta. Além disso, a autobiografia é possível quando a morte já não causa horror. Como diz Marcos Siscar, ela – autobiografia – surge quando o filósofo “pode, de consciência tranquila, enterrar sua vida, pois doravante ela lhe parece como que salva e imortal, o que provam algumas obras que ele evoca como testemunhas” (A paixão ingrata, 2000). Ele se refere ao corpo de textos que tratam de suas memórias como uma obra “auto-bio-tanato-hetero-gráfico”: heterográfica além de autográfica, porque implica a aproximação a um outro; tanatográfica além de biográfica, porque trata não apenas da vida, mas também da morte.

Sobre o narcisismo, Derrida faz uma ponderação que será muito lembrada por seus comentadores, e que aparece também no documentário: “não há o narcisismo e o não-narcisismo; há narcisismos menos ou mais compreensivos, generosos, abertos, estendidos, e o que chamamos de não-narcisismo é apenas, em geral, a economia de um narcisismo mais acolhedor, hospitaleiro e aberto à experiência do outro como outro. Eu acredito que sem um movimento de reapropriação narcísica, a relação com o outro seria completamente destruída, seria precipitadamente destruída. (…) É preciso que se esboce um movimento de reapropriação da imagem de si-mesmo para que o amor seja possível. O amor é narcísico. Então, há pequenos narcisismos, há grandes narcisismos, e há a morte no final, que é o limite. Mesmo na experiência da morte, se é que há morte, o narcisismo não se retira absolutamente” (There is no “one” narcisism [Autobiophotographies]. Entrevista a Didier Cahen, 1986).

A imagem e a autobiografia são, em Derrida, uma forma de situar mais claramente o lugar complexo e instável a partir de onde ele fala, o lugar de um sujeito não-totalitário, ao contrário, bastante poroso, feito de dúvidas, esquecimentos e de sucessivas mortes. Há uma simetria entre descobrir o outro em si e abrir-se para o outro a partir de si (desse narcisismo generoso). É assim que reencontramos nele uma medida precisa entre a negação iconoclasta e o culto desmedido à imagem, que demonstra o potencial político e altruísta que pode haver na construção de um autorretrato.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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