Multimídia tensa e multimídia relaxada

[18.abr.2010]

Na semana passada tive uma boa conversa com o pessoal do Garapa, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes. Eles contaram que, numa apresentação de seus trabalhos, alguém esbravejou afirmando que o que eles faziam não era multimídia, era apenas vídeo.

A arte e a comunicação têm vivido nas últimas décadas um momento muito fértil, que convida a atravessar as fronteiras que separam uma linguagem da outra, uma técnica da outra. Daí vem a vocação para as produções que chamamos de multimídia. Reconheço nesse processo dois momentos distintos, um que tem a ver com o desejo de transgressão e outro, com a liberdade de transgressão. É sutil, mas é diferente.

De um lado, há uma geração de artistas que deu a cara para bater enfrentando as tradições das várias artes, que trabalhou duro nas experimentações com a tecnologia, que testou as possibilidades de aproximação entre as linguagens. Essa geração fez disso uma bandeira, levou muita bordoada, mas soube construir as justificativas para produções que tinham um pouco de pintura, vídeo, fotografia, literatura, música, game, que explorava novos suportes, que convidava o público a interagir com suas obras. Temos que agradecer a essa geração por suas conquistas e pela herança deixada aos artistas mais jovens.

Do outro lado, há exatamente essa turma mais jovem, que foi contaminada pelo ar com esse espírito transgressor. Essa geração ainda é capaz de enxergar tanto o que fazia a tradição quanto os resultados das novas rupturas, mas a diferença é que podem ter uma postura mais leve diante de ambas. No exercício das liberdades que receberam de herança, sua produção simplesmente transborda em direções várias, por exemplo, da fotografia para o vídeo, da galeria para a internet. É uma geração privilegiada, porque teve a oportunidade de assistir à luta que foi travada, porque conhece a crise que se instaurou, e sabe discutir esse processo quando é convocada. Mas já não é preciso levantar uma bandeira, identificar o inimigo. Ao contrário, pode fazer o que quer, com uma radicalidade que nasce mais como despojamento do que como esforço. E podem ainda admirar trabalhos feitos à velha maneira, película, fine art, moldura etc.

Vale ainda considerar uma geração que estará produzindo em breve, e que não saberá o que é o mundo sem câmera digital, sem internet, sem celular, sem celular com câmera digital e internet. Contei ao pessoal do Garapa sobre o filho de um amigo que explicou um coleguinha que “carta é igual a um e-mail, só que se escreve a mão”. O Paulo Fehlauer respondeu com outra anedota: uma criança vê uma máquina de escrever e diz “pai, olha, um computador que já vem com impressora!”. Essa garotada vai fazer muita coisa boa, mas vai ter que estudar nos livros essa passagem que vivemos há pouco, se tiver alguma paciência para olhar para a história.

Retomando, há portanto uma multimídia tensa, que se configurou em meio a uma revolução, e uma multimídia relaxada, que se realiza no exercício da liberdade conquistada. A primeira tinha coisas a provar. Precisava mapear e demonstrar as possibilidades de conexão entre as linguagens. Ser multimídia era ser poderoso, ágil, amplo, eloquente, era ser de tudo um pouco ao mesmo tempo. Com isso, nossa concepção de multimídia nasceu um tanto barroca, marcada pelo excesso. Alguns dos pioneiros já haviam feito essa ponderação: Julio Plaza lembrava frequentemente de um antigo princípio da cibernética que diz: quanto maior a quantidade de informação, menor a probabilidade de produzir uma mensagem. Carlos Fadon Vicente também me disse uma vez: “botão demais é igual a interatividade nenhuma”.

A outra multimídia, essa mais relaxada, atravessa as fronteiras sem ter de pedir licença. Como disse o pessoal do Garapa, o vídeo estava lá na Mark II (vejam um post no Olhavê sobre a Mark II), a internet estava aí pra todo mundo…  Não foi preciso enfiar o pé na porta, foi só aceitar o convite. No que diz respeito às tecnologias, essa geração só se sente transgressora quando confrontada à história, situação que também enfrenta com desenvoltura.

Uma analogia: lembram do esperanto? Um dia alguém percebeu que o mundo estava cheio de conexões e decidiu aprofundá-las criando uma língua universal, que contivesse um pouco de todas as línguas. Foi um belo pensamento, mas passamos dessa fase. Hoje, é mais legal chegar num país sem grandes medos, sem uma causa, e descobrir que dá pra ter uma boa conversa em portuñol, ou num francês cheio de invenções, ou num inglês bem gesticulado. Não é preciso mixar todas as palavras e gramáticas, só é preciso flexibilizar o idioma quando necessário.

Conflitos ainda existem, não tanto no uso das tecnologias, mas nas dinâmicas dos mercados. Como o jornalismo pode absorver um trabalho multimídia? Como as galerias podem absorver obras que estão na internet em Creative Commons? A vida não ficou necessariamente fácil, não faltam bandeiras pra levantar, nem bordoadas pra levar.

Mas não tenho dúvida de que há coisas simples que merecem hoje a denominação de multimídia. Na conversa com o Garapa, lembramos que há outros fotógrafos fazendo vídeo, como o pessoal da Cia de Foto. Ou, ainda, Gustavo Pellizzon, com uma experiência radical em sua simplicidade, que chamou de Fotografias que respiram. Se a multimídia implica atravessar uma fronteira, trata-se aqui de tentar se equilibrar em cima dela.

O que faz o Garapa, a Cia ou Pellizzon quando recorrem ao vídeo ou à internet é multimídia. Só não é uma multimídia ansiosa em testar todas as conexões, nem barroca, nem panfletária. É multimídia, e o que é importante: é também fotografia, porque essa é a formação deles.  Porque a fotografia ainda é o “lugar conceitual” a partir de onde pensam sua produção. Aliás, não seria multimídia, seria apenas vídeo se esse fosse ao mesmo tempo o lugar de partida e de chegada. Mas, não, eles estão em pleno atravessamento.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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