Imagem, morte e tempo

[21.dez.2009]

Nesta última sexta-feira, faleceu Godelieve, esposa do professor e amigo Etienne Samain. Pouco antes do velório, Etienne apareceu com uma câmera e me pediu para fazer algumas fotos da cerimônia que aconteceria. Fiquei desconcertado, não consegui entender imediatamente o porquê dessas fotografias. Mas logo lembrei de uma de suas aulas numa disciplina que dividimos na Unicamp, em que ele analisa um álbum com 19 fotografias do enterro do avô de Godelieve, feitas em 1957, na Bélgica.

Sem dúvida, a morte e seus rituais interessam a um antropólogo. Mesmo quando ela ocorre tão próximo? Quem conhece Etienne, sabe o quanto ele critica o método tão difundido nas ciências humanas de olhar com distanciamento, e a forma mais corajosa de fazer isso tem sido deixar sua vida aparecer com grande transparência em suas pesquisas. É assim que vemos desde seu primeiro livro, em que apresenta a imersão na tribo dos Kamayurá, o papel que teve Kayãmaru (mulher que toca flauta), nome atribuído pelos índios à sua esposa. Cada um praticou a seu modo a antropologia: enquanto Etienne se aproximava das pessoas para compreendê-las, Godelieve fazia o mesmo para agregá-las. Foi assim nos muitos lugares em que ela viveu, foi assim também em sua morte.

Trecho do documentário “De um caminho a outro”, dirigido por Clarice Ehlers Peixoto. No vídeo, vemos Etienne, Godelieve (recentemente e também quando era chamada Kayãmaru) e a filha Maíra.

Não foi fácil circular com a câmera enquanto todos sofriam e choravam. Sabemos que outros rituais – casamentos, aniversários, formaturas – já são formatados para a fotografia, mas não este. A morte ainda é assustadora demais para ser reduzida ao espetáculo das imagens.

O álbum do enterro do “vovô Viktor” na Bélgica aliviava minha tarefa, como uma espécie de jurisprudência, mas eu ainda não sabia o que fotografar. Qual é a linguagem da fotografia de enterros? Se é que já houve uma, ela se tornou distante. Até conhecemos o antigo  hábito de fotografar pessoas mortas, às vezes, de levar o cortejo fúnebre ao estúdio local, mas sempre vimos isso como uma bizarrice provinciana e arcaica. Enfim, o que fotografar?

Lembrei de novo das aulas do Etienne. Nos últimos anos, ele não tem se interessado pelos grandes códigos que permitem ler a imagem: as poses, as composições, ou as performances que se repetem nos rituais. Ele tem levado a sério o interesse pelo Punctum, aquilo que escapa às intenções do fotógrafo. E tem colocado Barthes em diálogo outro antropólogo belga, Albert Piette, que se interessa por aquilo que chamou de “modo menor da realidade”, o detalhe, o pequeno gesto, a pequena expressão facial, as direções dos olhares. Então, era impossível decidir o que merecia ser fotografado.

Difícil saber também o que não fotografar. Se não há uma linguagem para a fotografia de enterros, também não há uma ética. Aparentemente, ninguém se incomodou com minha presença, talvez porque todos ali soubessem da forte ligação que Etienne tem com a imagem. Mas fquei me perguntando porque eu me tornava tão moralista e tenso quando confrontado com a morte. Como já sugeri, fotografamos tudo mas, por medo e respeito, preservamos a morte da exposição.

Ora, não fosse o esforço de nossos ancestrais em lidar com a morte, talvez não existisse a fotografia. Talvez não existisse sequer o que chamamos hoje de arte, pois chamamos assim imagens que muitas vezes surgiram para dar conta da morte, para garantir a passagem para uma outra vida, para criar uma comunicação entre os que ficaram e os que se foram. “Sema”, que está na base de termos como semântica, semiótica, semiologia era nada mais do que a pedra tumular. O sentido de um signo é garantir a possibilidade de presença daquilo que está distante ou ausente. É assim que as imagens se afirmaram em nossas civilizações.

Mas se as imagens nasceram da morte, porque então poupamos a morte das imagens? Enquanto algumas sociedades antigas viviam em função desse tema obscuro, a modernidade optou por se voltar para as luzes, para o bem estar, para o prazer da vida. Aparentemente, esquecer a morte é uma condição para alcançar a felicidade. Mas não é bem assim. Ninguém aproveitou tanto o tempo presente quanto os trágicos antigos, aqueles que viviam com a consciência de que talvez não existisse amanhã. O hedonismo moderno e o conseqüente pudor com relação à morte é apenas covardia travestida de racionalismo.

Então, se a pergunta é “por que alguém iria querer guardar imagens que lembram a morte?”, a resposta pode ser simplesmente: porque não há motivo para temê-la e porque enfrentá-la serenamente é uma forma de celebrar a vida.

Essa é a questão que move um livro muito interessante de Regis Debray, Vida e Morte da Imagem. Ele lamenta o fato de que, quando afastamos a morte de nossas vistas, resta “um fluxo de imagens, sem pretexto nem conseqüências”, isto é, a imagem passa a existir sem o maior e mais profundo dos sentidos que já possuiu. Segundo ele, quando evitamos a imagem da morte, assistimos à morte da imagem.

Interessante foi sair do enterro e chegar, horas depois, na festa de aniversário de outro amigo, co-autor deste blog. Como não deixaria de ser, a fotografia estava também ali muito presente, nos registros que eram feitos, mas também num álbum que circulava entre os convidados, com uma biografia visual do aniversariante que começava com os antepassados (essa palavra que a gente evita porque soa tão primitiva!). Naquela casa, tudo é memória: a própria casa, os móveis, os discos de vinil, a decoração de natal. Incrível como a forma intensa e espontânea de lembrar as pessoas ausentes apenas intensificava a alegria de quem estava ali presente: nenhuma dívida com o passado, nenhum temor quanto ao futuro, apenas uma bela festa, uma festa expandida, que reverberava também a alegria vivida com outras gerações.

As duas celebrações daquele dia me fizeram pensar que nada dá mais consistência à imagem que a vivência do tempo.  Nada nos deixa mais em paz com o tempo do que a experiência da imagem.

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jornalista, pesquisador, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), professor e coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP).

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